Como o futebol explica o Homem
Fomos caçadores-recolectores e
desenvolvemos estratégias, tácticas, conspirações para apanhar as presas. Era,
literalmente, matar ou morrer. Também do ponto de vista genético, biológico
tivemos que ganhar capacidades de corrida, força, resistência, cálculo e tanto
mais. Um dia aprendemos a domesticar animais. Com a sociedade agrícola ficámos
mais sedentários. A conversa e o treino mole não iam connosco, humanos
preparados para o assalto final, adrenalina que havia que fazer jorrar,
ansiedade e stress para colocar em campo, a aventura que havia que manter
intacta: continuámos a caçar (mesmo com a emergência da Agricultura).
Fomos progressiva, mas sucessiva e maciçamente para as cidades. A cultura
urbana não se dá bem com as caçadas - que permaneceram em retiradas ao campo.
Sobretudo, e com os romanos, as caçadas chegaram à cidade: o Coliseu, com 45 a
50 mil lugares, encheu no primeiro dia para ver 5 mil animais serem mortos. A
tourada poderá ser vista como o grande sucessor moderno do Coliseu. Ou, quiçá,
as largadas de Pamplona imitem melhor os tempos antigos - de Pamplona e de
certas partes de Inglaterra ainda em 1820, diga-se. Os domadores de leões, do
circo, podem ter ainda aí a sua génese. Mas a defesa, no séc.XIX, dos animais,
veio para ficar e a caça primeva sofisticar-se-ia sob a forma futebolística. A
guerra, outra metáfora, não responde ao que no futebol não é a aniquilação do
inimigo, mas caça à baliza contrária. Quando se pergunta, antropologicamente, o
que está em jogo com o futebol, a resposta de Desmond Morris é:
está, antes de mais, o homem caçador recolector, os assistentes do
Coliseu, moderninhos e por isso recolectores-caçadores
frustrados, que apontam o arco e flecha à baliza adversária (num jogo onde
as tais características de táctica, estratégia, pontaria, motivação, valentia,
visão, força, resistência, perseguição, bem como a adrenalina, a aventura, a
presença tribal estão aí).
"O animal humano é uma
espécie extraordinária. Entre todos os acontecimentos da história humana,
aquele que atraiu a maior assistência não foi uma grande ocasião política, nem
uma celebração especial de alguma proeza complexa nas artes ou ciências, mas
sim um simples jogo de bola - uma partida de futebol. Calcula-se que mais de
mil milhões de pessoas terá assistido a uma final do Campeonato do mundo quando
esta foi transmitida na televisão global" (p.12). Ora, este facto
gera, não raro, estupefacção, zanga, mau-humor, incompreensão. A ideia, sugere
Desmond Morris, é estar mais atento ao futebol, isto é, perceber o que no
futebol extravasa o futebol e diz muito (mais) sobre o Homem que o vê e/ou
pratica; como no futebol percebemos o humano, de que forma aquele ajuda a
explicar este. Não é um fenómeno guerreiro, mas é certo que o que podemos
escutar durante um jogo entre os tiffosi ou os movimentos
do marcador relevam, para muitos, de uma "batalha estilizada":
"se o jogo de futebol fosse não mais do que uma caçada ritual, tudo o
que interessaria a uma equipa e aos seus adeptos seria o número de golos (ou
seja, matanças) marcados, independentemente do número conseguido pelo
adversário. Mas, obviamente, não é este o caso. A diferença entre o número de
golos marcados é que assume a maior importância, sendo muito melhor ganhar por
1-0 do que perder por 3-4. Como tal, ainda que a sequência do jogo e a sua
«perseguição ritual de uma pseudopresa» se baseiem na analogia com a caça, o
resultado final está, isso sim, relacionado com o simbolismo da batalha. Estas
duas facetas [caça e batalha] encontram-se activas e contribuem para o
entusiasmo sentido pelos espectadores" (p.29). De resto, a
doutrina divide-se entre os que pensam ser o futebol uma válvula de escape
benigna, que canaliza e purga as tensões e frustrações da semana nos insultos a
jogadores e árbitros ao fim de semana (um efeito catártico, que coloca em local
seguro da cidade uma autêntica "bomba atómica" acumulada) e,
diversamente, quem entende que nenhum efeito terapêutico há aqui, porque a ida
ao futebol é um acumular de tensões, é um acréscimo de emoções negativas, a
ansiedade e o medo da derrota a acrescentarem à zanga familiar ou às pressões
do patrão na empresa. Ambos têm razão e os efeitos anulam-se mutuamente,
entende o biólogo-etólogo (pp.30-31).
Uma outra imagem para o beautiful
game passa pela comparação religiosa: mesmo os hooligans,
afinados nas canções, assemelhar-se-iam a meninos de coro. A
liturgia de sons e coros da bancada, o «relvado sagrado" e o estádio
«santuário» concertar-se-iam para indicar ou ratificar esta imagem (para além
de magias e superstições com que muitos confundem o religioso - e que no
futebol abundam). "Num aspecto importante, não podem restar dúvidas
quanto à importância religiosa dos eventos futebolísticos. De um modo bastante
real, e para uma grande parte da população, estes substituíram os serviços e
festivais religiosos de outros tempos. À medida que as igrejas de muitos países
ocidentais se foram esvaziando com o enfraquecimento da fé religiosa, as
comunidades das grandes cidades perderam uma importante ocasião social. A
reunião regular de grandes congregações nas manhãs de Domingo era mais do que
uma questão de culto comunitário: era também uma afirmação de identidade de
grupo. Proporcionava aos devotos frequentadores da igreja de outros tempos uma
sensação de pertença. O serviço religioso apinhado era um acontecimento com
tanto de social como de teológico. Agora, com o seu declínio, bem como dos
salões de dança públicos e dos cinemas, e com a ascensão desses grandes
isoladores sociais - televisão e o computador -, o homem da cidade vê-se
cada vez mais privado de grandes reuniões comunitárias nas quais pode ver ser
visto como parte de uma população local. De algum modo, o desafio de futebol
sobreviveu a estas alterações e, agora, assume um papel mais importante
enquanto forma de demonstração de fidelidade local" (p.33). Essa
ligação umbilical ao "local", por parte do futebol, é ilustrada por
Morris, de um modo para nós talvez surpreendente, com o acréscimo económico
para cada comunidade em função do desempenho positivo do clube da terra, na
medida em que isso gera uma motivação, uma sensação de bem estar, uma
disposição dos trabalhadores que aí se reflecte claramente ("um
impressionante testemunho disto mesmo é a descoberta de que o sucesso da equipa
de futebol local aumenta, na realidade, a eficiência e a produtividade das
fábricas próximas. O incremento de estatuto sentido pelos trabalhadores locais,
que constituem o grosso dos adeptos futebolísticos, traduz-se num melhor ritmo
de produção e numa economia local mais dinâmica", p.32).
Porque é que, sintetizemos em
definitivo, o futebol é importante e concita tanta atenção pelo mundo? Porque
nos devolve ao primitivo estado de caçadores-recolectores em
versão sofisticada, mas com suficiente adrenalina e aventura (o nosso código
genético impele-nos a essa aproximação a uma actividade que concentra
tantas características próximas dessa dimensão primordial para sermos como hoje
somos); porque num mundo atomizado e sem pertença(s), o futebol, para muitos é
espaço de religação; porque há uma liturgia, cânticos, cores e
emoções que nos ligam aos outros, em especial aos outros "locais" ou
da mesma cor (a tribo); porque há uma "cidadania local" que toca os
resultados do clube da terra; porque nos empenhamos na encenação da batalha
(mais um golo do que o adversário e vencemos aquela luta - e nisso nos
entusiasmamos); porque há algo de representação teatral, também, no futebol -
"grandes estrelas, desempenhos virtuosos, ocasiões de gala, clubes de
fãs" (p.40). Eis como Desmond Morris explica o (sucesso do) futebol,
quer dizer, o homem (que vê e pratica futebol).
Pedro Miranda
Acaba de ser reeditado e revisto
(edição aumentada) o livro A tribo do futebol (Arte e Ciência,
2018), de Desmond Morris, com tradução de Francisco Silva Pereira e
Prefácio de José Mourinho: "É por isso que dizem que o
futebol é o desporto mais completo da história da humanidade. Há a emoção e a
matemática, fundidas numa equação elegante. A tribo evolui como evolui o jogo.
O futebol total deu lugar à totalidade do futebol - dentro e fora do campo. E
quem não o percebe, não percebe nada. Quem só sabe de futebol não sabe nada de
futebol. Quem só olha para o jogo como 22 homens atrás de uma bola não percebe
a sua vertente geométrica, o seu bailado, a sua imensidão psicológica, a sua
verdadeira natureza - a representação mais fiel da natureza humana nas suas
variadas componentes: uma tribo onde a razão impera pela táctica e a emoção
impera pela recreação" (p.10).
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