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Sessão de poesia com João Vaz Ribeiro




Se conseguisse apenas caminhar, quando caminho;
apenas inspirar e expirar; orar apenas,
em estado de oração - seria um vivo; os meus sentidos
noticiavam Deus ao mesmo Deus, em transparência;
o Espírito viria a este lado como Ele é
do Lado Seu, encarnação sem mácula, trazendo
ao limite o que é ilimitado, a uma forma
o informal, à vigília o que é Sono Profundo.

Sono Profundo! O girassol aberto da existência,
a nitidez da paz de cada ser visto do centro!
E o milhão de grânulos imersos no fulgor,
moventes, semoventes, capturados no seu âmbar
de alegria, no seu arco vital de uma tontura.

Porém, quando caminho, faço escolhas - e o mal
não está no escolher, mas na fractura de me ver
em parte num caminho, em parte noutro e num terceiro
e em muitos mais ainda, dividido, em surda guerra
de mim comigo mesmo, acusado, amotinado,
desfeito por soberbas, estultícias, teimosia.

Também a oração é facilmente afugentada
devido à predação dos pensamentos, à batida
dos erros que há por trás dos pensamentos; ao fascínio
das frases que armadilham esses erros; e ao cerco
do código do mundo que fraseia os pensamentos.

E do Sono Profundo, inteligência transparente,
assim me troco em ânsia, espessidão, vigília e medo.
Se conseguisse apenas caminhar, quando caminho;
apenas inspirar e expirar; orar apenas,
em estado de oração - seria um vivo.

Carlos Poças FalcãoSombra Silêncio, p.11

[antes e para lá das palavras, de todas as distracções, de todo o supérfluo; recriminação pelo que gizamos, do ruído que criamos, e nos afasta do Ser; nesse concentrado sem pensamentos, sem palavras para dizer, no silêncio, e apenas a sermos encontrá-Lo-íamos, encontrá-lo-emos; sem estratégias de fuga - o passado, o futuro -, sem circundar por objectos e objectivos, sem planos, sem gramática que não a do silêncio; estando no mundo, fazemos escolhas, e conseguir que elas estejam à altura do que professamos, do que entrevemos, do que intuímos e tocamos, sem nos fracturarmos sem vários que nos impedem de saborear a aproximação a esse concentrado em que nos realizamos; aqui, de novo, assoma, de algum modo, o Guardini de "O espírito da liturgia"]


Eu sou a noite
eu sou a espera inútil, a vasilha que ressoa.
A minha alma é nova, mas espero desde sempre.
Como o deserto espera pela gota que há-de vir
eu não procuro e abro-me em espera, eu acredito
no cálice vazio, na cisterna por encher.
Eu sou a obediência, a saudade em sua teia.

Podem correr mil anos: eu cá estou como na origem
no tempo da promessa, na alegria então vertida.
Porque eu sou a memória transparente que não cessa
lembrança do desejo de um Um só, coisa nenhuma.
Em mim nada se cumpre a não ser a própria espera
silente e confiada, impecável e segura.
Em mim todos procuram, sem saber, alguma aurora
- mas só eu sou a aurora. Sou a noite e sou a aurora.

Carlos Poças FalcãoSombra Silêncio, Opera Omnia, 2018, p.9.


[Deus presente no desejo de Deus, não na 'posse' (idolátrica): "em mim nada se cumpre a não ser a própria espera silente e confiada, impecável e segura"; que o Nada seja outro nome de Deus, escreve Halík, na esteira de Mestre Eckhart: "eu acredito no cálice vazio, na cisterna por encher"; aposta: "Eu sou a obediência, a saudade em sua teia"; precisamos de adimplemento: "como o deserto espera pela gota que há-de vir", completude que advém somente do exterior fundamento da pessoa, O Deus único, amor, não um ente entre os entes, não uma coisa: "lembrança do desejo de um Só, coisa nenhuma", e a "alegria então vertida", permanece, como na origem, a confiança existencial "no tempo da promessa". No que se tacteia sem forma completamente divisada, sem definição exacta, na fuga a uma completa "compreensão", "noite"; na promessa que permite o dia inicial, a alegria da promessa, "aurora"].

Carlos Poças FalcãoSombra Silêncio (Apresentação)

Carlos Poças Falcão nasceu em Guimarães, em 1951. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, exercendo a advocacia durante alguns anos. Abandonaria este ofício para se dedicar à docência e à escrita. Não vê televisão, nem está nas redes sociais, “pois os olhos ficam presos e a alma não tolera a serpente das imagens que emite servidão”. Publicou o seu primeiro livro em 1987.
De Carlos Poças Falcão dirá o também poeta e prestigiado crítico Manuel de Freitas, no Expresso de 1 de Dezembro de 2018, tratar-se de “um dos mais importantes e discretos poetas portugueses contemporâneos”, no que é corroborado, por Diogo Vaz Pinto, a 7 de Dezembro, no jornal I, em um ensaio no qual assinala que Carlos Poças Falcão vem trilhando “um dos mais significativos percursos poéticos da nossa poesia”.
O livro sobre o qual iremos escutar alguns poemas, ditos por João Vaz Ribeiro, Sombra Silêncio, foi eleito, pelos críticos literários do jornal Público como o “Livro de Poesia do ano”, em 2018, em Portugal. E é finalista do Prémio para Melhor livro de poesia do ano, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores.
Sobre Sombra Silêncio, o crítico Hugo Pinto Santos fala de um livro que é uma “busca por uma possibilidade de sentido para o humano, enquanto carne e espírito”, uma poesia que se interroga, uma escrita que é causa e consequência da inquirição do humano e do transcendente. O sujeito poético, nestes termos, apresenta-se-nos, pois, despido perante a “violência da questionação”. Numa palavra, esta poesia reflete, sem receios, acerca da condição humana, sem obliterar a desumanidade que, na maior parte das vezes, a define. Ainda seguindo o crítico do Público, “a reflexividade e a meditação de teor metafísico nunca [nesta obra] transporta o poema para os terrenos indesejáveis da soberba, do proselitismo ou da afectação”. E isto, porque “o carácter intelectualista, ou mesmo especulativo, desta poesia não traduz uma vontade impositiva de persuasão”. Uma poesia que fala dos cães, dos arrabaldes, da tensão alta – é desse terreno, desse chão que (então) se perscruta o transcendente.
Se os poemas iniciais de Sombra Silêncio indiciam uma filiação bastante expressiva – «uma espera silente e confiada» -, de contornos claros, com o «objecto» de indagação, Deus, a adquirir certa proximidade, compreenderemos, ao longo do trajecto do sujeito poético que, a dado momento, e para usar a expressão de Manuel de Freitas, sobressai um “inequívoco desalento”. E, todavia, não se dá, neste – no sujeito poético -, ainda assim, um mergulho no desespero: «A graça, no entanto, guia ao eixo os descaminhos”. Do que se trata, refere Diogo Vaz Pinto, é de preferir a lucidez à impaciência, no que aqui parece, de algum modo, permitir acolher uma “teologia negativa” (isto é, aquela corrente teológica que, ao longo dos tempos, sublinhou que sobre Deus apenas pode dizer-se o que Ele não é) [e cito]: “o poeta diz-nos que o que nos faz tremer é que essa «escuridão profunda não se deixa imaginar». Esse limite, que nos devasta de cada vez que tentamos vislumbrá-lo, mostra que a morte se impõe, afinal, contra o próprio mundo, e, na sábia inversão que fez Leopoldo María Panero, o que parece é que é a vida que nesse instante se lança contra o nosso ser”.
Sombra Silêncio, nas palavras do próprio autor, Carlos Poças Falcão, é a reunião de poemas muito esparsos no tempo, no espírito e no estilo, alguns dos quais remontam a finais dos anos 80 do século passado. Poemas, quase meia centena, que são, regista Vaz Pinto, “uma integração da sua voz à densidade dos ritmos que ressoam desde tempos ancestrais”, uma voz, dirá António Guerreiro, de uma extraordinária “exuberância imagética” que segue o caminho inverso do da secularização.
Por detrás destes versos, desoculta Carlos Vaz Marques, em “O livro do dia” (na TSF), há um “programa insubmisso”: o de resistir e construir uma armadura “contra a vozearia do mundo” (“calar e apagar, desconectar, desaparecer”). O jornalista e editor qualifica Poças Falcão como “eremita do tempo moderno, ele bebe a cerveja no último reduto e vai pelas ruelas, em vez das avenidas, perdendo os autocarros, o metro, os mensageiros que fluem sem ter rosto pela solidez do mundo”.

O poeta Manuel de Freitas destaca o “nível elevadíssimo destes poemas”, o “rigor desta escrita”, em suma, “um livro magnífico” do qual extrai dois versos em forma de síntese: “O horror é a matéria deste ar que respiramos/mas os pulmões adâmicos foram feitos para a beleza”.
Ao longo dos próximos 25-30 minutos, escutaremos poemas desta obra selecionados e lidos por João Vaz Ribeiro, engenheiro (e, já agora, quase arquitecto também), alguém com vasta experiência enquanto diseur de poesia, nomeadamente a alunos dos mais variados graus de ensino.
A intervalar conjuntos de quatro poemas ditos por João Ribeiro, escutaremos, ainda, outros poetas – Adélia Prado, Sophia, Hélia Correia, José Augusto Mourão, José Tolentino de Mendonça – pela voz dos nossos alunos, assim também intérpretes desta manhã de poesia.

Muito obrigado.
Pedro Miranda




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