A recensão de Pedro Miranda.
1.Pode ser maior a vergonha social - a vergonha das origens sociais, familiares, que a todo o custo se pretende ocultar - do que a vergonha sexual - a vergonha de uma orientação sexual minoritária, que se pretende esconder. Didier Eribon assume
ter tido maior relutância/dificuldade em escrever sobre a primeira do
que acerca da segunda. No agora professor universitário, convive a
filiação em uma família pobre com a homossexualidade. Regresso a Reims (D.Quixote, 2019, tradução de João Carlos Alvim) é
tanto uma auto-biografia que permite fazer uma sociologia, como,
dir-se-ia, uma sociologia que pode ser instrumento de pacificação
consigo próprio - muitas vezes, Eribon aponta o dedo a si mesmo, ao seu
egoísmo (p.106), ao seu abandono da família, em especial - e com aqueles
a quem pertence - um pai, cuja personalidade detestara passa, na
sua reelaboração sociológica do mundo, a ser uma vítima de uma
determinada ordem social.
2.Do
ponto de vista político, percebe-se muito bem, creio, a pertinência da
publicação deste livro (mesmo) uma década após a sua edição original: a
sua aproximação ao movimento da "classe operária"[já problematizaremos a
expressão, no que possa conter/transmitir de (não) unívoca] da esquerda
comunista à extrema direita resiste perfeitamente ao tempo e permite
uma abordagem que tende a ser mais complexa, densa, completa que o
retrato jornalístico mais típico (a este respeito). Eribon observa esta
mesma realidade na sua família. Da militância comunista, muito convicta,
até ao voto na Front National. Nuance: a passagem não se dá
apenas para a extrema-direita; em certas eleições, mãe e irmãos haviam
votado (passaram a votar) num candidato da direita (tout-court; não
necessariamente um voto no candidato de extrema-direita).
Em
1977, o PC francês alcançara 20-21% dos votos. O que contribui para o
seu declínio, então? Na análise deste homem formado em Filosofia,
tratou-se de i) uma incapacidade (do partido comunista francês) de romper com o PC soviético, que financiava o seu congénere gaulês; ii) uma incompetência d interpretação, leitura, integração dos movimentos sociais surgidos na sequência do maio de 68; iii) a desilusão com a governação, na qual participaram membros comunistas, no início dos anos 80 (em 1981, Miterrand congrega, para si, uma parte dos comunistas, que alcançam apenas 15%); iv) a aceitação, pela esquerda, de uma espécie de contra-revolução ideológica, conservadora, à qual acabou por aderir; v) neste contexto, a perda, a mudança da linguagem (p.120) revelou-se, igualmente, determinante (diz
Eribon, em dois exemplos, que deixou de se falar em exploração e
resistência e passou a falar-se de «modernização necessária» e
«refundação social». Desapareceram as noções de classe e da polaridade entre dominadores e dominados; vi) o
discurso sobre os operários varreu-se e, estes mesmos, os operários
obliterados do espaço público (mediático), isto é, deixa de haver uma representação (das perspectivas, dos interesses) de tais operários.
A coligação entre grupos determinados grupos sociais - mundo operário, funcionários públicos, professores - quando o «voto operário» era comunista - passa (agora) a ser outra quando a extrema direita recebe os votos operários: operários, precário s, comerciantes, reformados abastados do sul da França, militares fascistas, famílias católicas tradicionais comporão uma nova coligação político-social...(p.127)
Muito interessantemente, Didier Eribon coloca, depois, em crise o pressuposto da «naturalidade» da adesão operária ao comunismo,
para concluir que nunca o voto operário nos comunistas foi além dos
«30%», sempre a direita tendo alcançado muitos dos sufrágios deste grupo
(ao contrário do que tantas vezes se supõe, ou dá como adquirido).
Ainda segundo o ensaísta - que trabalhou no mundo do jornalismo, no Liberation e no Nouvel Observateur - o voto nos comunistas, pelos operários, era um voto que, depositado individualmente, era realizado em nome de uma «classe»; o voto na Front National era (é) uma soma dos preconceitos individuais de cada um dos operários. O PC captava tanto quanto moldava uma opinião/modo de estar políticos; a Front National limita(va)-se a incorporar os piores preconceitos dos seus putativos votantes. Neste aspecto, na visão do autor, durante anos, pertencer ao Partido significava, por exemplo, que a perspectiva racista, ou anti-imigração de
muitos membros do operariado tinha que ser, depois, por estes,
(auto-)anuladas - e essa era uma dimensão que tais militantes aceitavam,
sabiam, viam, quase, com benignidade (uma espécie de missão civilizante que a integração política, naqueles termos, incluía; mesmo que o livro nos diga também dos flirt's do próprio Partido com
posicionamentos anti-imigração; esta auto-biografia realça também que o
movimento operário, as suas características, nas décadas de 60 e 70 do
século XX não eram nada idênticas às dos anos 20/30).
Na
descrição do posicionamento político dos seus familiares, a ideia de
que se o voto no PC - enquanto durou - foi convicto, confiante e
assumido, o voto na extrema direita não tinha (tem) o grau de adesão, de
lealdade e de clareza (assunção do voto; a questão do voto escondido), ou mesmo identificação programática daquele (anterior).
3.Em O ódio à democracia, Jacques Ranciére havia escrito que a democracia é o regime para o qual não há uma competência particular para nela se exercer um cargo, ser um representante (participar).
Título académico, ascendência, (ser-se um) profissional de determinada
área; nada habilita - a não ser o facto de ser cidadão - alguém para exercer o poder em democracia. Neste sentido, a democracia - nela exercer-se um determinado cargo - é o regime de todos (ou, se se preferir, de ninguém). Não há grupos "naturalmente" (pre)destinados a liderar num regime democrático, não há peritos ou tecnocratas a quem esteja destinado um cargo.
Este
postulado, contudo, em não deixando de conter uma crítica implícita a
um círculo restrito dos que se vão mantendo no (ou gravitando em torno
do) poder (e seus corredores) ao longo de anos, como que pretendendo
alargar o grupo dos que deviam ser tidos em conta para exercer cargos de
governo (nos últimos anos, o regresso da ideia de sorteio, em democracia, tem tido particular força em diversos debates), recusando a tecnocracia, chamando a atenção para uma potencial elitização dos
grupos de recrutamento e das vozes que fazem falta - outras
experiências de vida, outros percursos a não serem levados em atenção,
pelo menos em algumas democracias, do que os do universitário, advogado, pr ofessor... -, podendo, aliás, retirar-se que assim se chamava a atenção para a reconhecida brecha entre representantes e represe ntados, não convence, de modo substantivo, Didier Eribon: para este, que cita expressamente esta obra de Ranciére, não se trata de emancipação (com esta proposta, a da não necessidade de competência para se exercer a democracia), na medida em que, com esta ideia, não se chega, sequer, a questionar porque os que não têm competência -
num regime que a dispensa - não a possuem; por que é que os grupos sem
especial qualificação, pensam, votam e decidiriam como o fazem (fariam;
no caso de exercerem esse cargo...no seu entender, perigosamente, como
depreende do que observa na família; mas ainda aqui um medo do povo,
criticar-se-ia e, de qualquer forma, a ausência de competência, levada
ao limite, colocaria o problema da competência para exercer um sufrágio).
4.No final da adolescência, e durante a sua juventude, Eribon quis afastar-se,
o máximo possível, do meio de onde veio que representava, então, tudo o
que lhe repugnava no plano dos sentimentos, práticas e ideias. Sentia, por exemplo, auto-complacência por não ter nos pais os interlocutores que achava merecer para os seus diálogos culturais. Ao contrário do que propunha Deleuze, para os pais de Didier Eribon ser de esquerda não
tinha nada a ver com o suplantar do interesse pela sua rua e
envolver-se emocionalmente com os oprimidos do mundo inteiro; eram
considerações de ordem pragmática e muito comezinhas que os levavam a
optar pela gauche (era esta que defendia os seus interesses nas questões que os importavam no seu quotidiano francês). O racismo estava
presente claramente na família (pp.133-134) - mais tarde, Eribon dirá
perceber que a matança de cordeiros em sacrifício, os cheiros horríveis a
comida num inteiro bairro, as pichagens nas paredes, a destruição de
equipamentos sociais por parte de vizinhos magrebinos, justifica uma
merecida indignação: mas como se faz disto uma visão global do mundo,
assente no racismo?, era uma interrogação que o mortificava -, a homofobia, o anti-intelectualismo ( atente-se na cena em que Eribon chega a casa com o Le Monde),
os dichotes populares contra "os pretos", ou os "maricas" ou os
"boches" (como chamavam, depreciativamente, aos alemães). A recusa de
excessiva importância, e muito menos de poder, da juventude
(nomeadamente universitária), fosse na família, fosse para ter em conta
em termos político-sociais. O pai de Eribon ia para a taberna beber,
embriagava-se frequentemente e era violento com certa constância (em
família). Provavelmente, terá encetado relações extra-matrimoniais, que
lhe pareceriam absolutamente normais...tanto quanto jamais toleraria
que, alguma vez, idêntica ocorrência tivesse lugar com sua mulher. A sua
virilidade, aliás, seria posta em causa se a esposa conduzisse o carro
em vez deste (como chegava ocorrer à falta de carta deste), ou
sustentasse (esta) a família em situação de desemprego do marido (ter a
mulher, como sucedeu, que ir trabalhar para uma fábrica, com a presença
de outros homens nesta, era, já de si, desonroso o bastante; a mãe de
Eribon trabalhou como empregada em casa de patrões que praticavam, como
era uso à época, assédio sexual; tinha-se casado, de forma pragmática,
com o homem que viria a ser pai de Eribon, não por ser o seu desejado,
mas porque em falhando este, por complicações familiares, queria
emancipar-se e construir família...pode ser este como podia ser outro; a
mãe de Eribon sempre se soube inteligente e sofreu, por consequência,
por não ter chegado muito mais longe na hierarquia social por falta de
oportunidades).
Se Eribon se filiará, também ele, claramente à esquerda - virá a ser trostkista -,
a contradição a que se via obrigado era um peso que carregava sobre os
ombros: se o mundo operário que conhecia bem tinha aquelas
características, e em boa medida lhe causavam repulsa os sentimentos que
ali germinavam (bem como os discursos/práticas) era, paradoxalmente,
este (mesmo) operariado que, ideologicamente, se esperava que defendesse
(e defendia convictamente, ao mesmo tempo).
O retrato cru de Eribon, sobre o modus vivendi da família, e do entorno operário à volta, como que tem algo do Orwell de O caminho para Wigan Pier,
quando não idealiza a classe operária e a conta com a frieza e o
objectividade tal qual...ela se perpetua na sua memória. O
tradicionalismo, os preconceitos, a recusa do outro (de nacionalidade
diversa) com o qual, porventura, se esperaria que estivesse em fraternidade -
era, às vezes, a greve que irmanava, de facto, nacionais e
estrangeiros, em França, em luta contra o mesmo patrão; mas era, pois,
uma irmandade construída politicamente - não são, aqui, obnubilados.
Nasceu
na pobreza, na miséria mesmo, veio de uma família cujos ascendentes,
não raro, eram analfabetos (como uma das avós [pp.50-51]; o pai ficou-se
pela instrução primária), haviam casado e tido filhos muito cedo e, em
sucedâneo, postos fora de casa pelos respectivos progenitores; estes,
recusarão, pois, os seus descendentes que viravam-se como podiam
(o pai passa a ser operário antes dos 14 anos; e trabalhará, em
simultâneo, em duas fábricas), famílias extremamente numerosas (a sua
avó foi presa por abortar (p.68); os irmãos de Eribon, com a sorte decidida à nascença - nos termos deste -, concluíram em mecânico ou outra profissão "não intelectual"; ele seria o "miraculado" [era um milagre gostar de livros, pp.108], cujos pais vendiam leite para ele poder estudar Platão,
e que ainda assim na faculdade foi [teve que ser] vigilante de
computadores e trabalhou num hotel para poder sustentar-se (os pais
garantiam-lhe, e com que orgulho, dois anos na faculdade, mas não
possuíam recursos económicos para mais). Mesmo com pais não crentes, e até anti-clericais, foi, por estes, baptizado e, bem assim, inscrito no catecismo, não faltando às devidas comunhões/profissões de fé.
Houve um tempo em que pretendeu-se afastado de toda a tarefa manual -
que julgava menor e inapropriada para quem se queria um intelectual
(até ao dia que viu um respeitável académico fazer estantes nos tempos
livres); assim, e ainda, o gosto pelo futebol haveria de merecer o seu
desprezo, forma última de se reconhecer um bom espírito - também
isto lhe passou. O cuidado com o sotaque, a (auto) vigilância dos
vocábulos e expressões a usar; a mentira, mesma, sobre as suas origens.
Assim foi durante anos. E, na revisão de uma vida que o levou às causas
sociológicas de tudo - no que lhe valeu uma suspensão dos juízos mais
severos que ruminara sobre os familiares diletos -, o reconhecimento, todavia, ainda, de que sem dúvida as redes informais de sociabilidade são
determinantes, mesmo com os melhores diplomas, para se chegar a um
emprego razoável. Foi num círculo de homossexuais, por aí se espalharem
pessoas de várias classes sociais (de aí poder subir ao elevador,
portanto, dando o salto social), que acedeu às publicações de prestígio
(ou nem tanto, no olhar esquerdista de Eribon sobre o Libe em metamorfose ou Nouvel que
nunca o convenceu) e ao mundo cultural a que aspirava; sem se ter
encontrado com aquele círculo, com as mesmíssimas qualificações (que
alcançara), não iria a nenhum lugar dado o ponto de partida. O
mesmo, conta, que o levava a não ter, inicialmente, no liceu (ele que
sempre foi bom aluno), o comportamento, a disciplina, o polimento, a
atitude, que o deveria levar mais longe - e como uma amizade, em
particular, o levou a esses ganhos, ao conhecimento dos compositores,
dos autores, na música e na literatura, que era necessário conhecer para
se ser alguém; aprendeu modos, um outro vocabulário, uma maneira de ser
diversa; como que passou para outro habitus (e como em Eribon um autor como Bordieu é determinante!), e esta imitação liceal (do seu colega, filho de pais universitários) foi-lhe fundamental. Mas escolheu espanhol - quando os melhores apontavam ao alemão - e foi para letras - quando melhores empregos estavam nas ciências porque nunca teve um background familiar
que o ajudasse a ler e interpretar o mundo. De aí, também, ter
principiado por desaguar numa universidade próxima de Reims,
sensivelmente cavernícola no que ao estudo da Filosofia diz
respeito. Só a mudança para a capital - e apesar dos lugares de engate
na terra de origem, a mudança para a grande cidade para poder
prosseguir, digamos assim, a sua orientação sexual era um clássico;
neste aspecto, e ainda assim, Eribon escreve páginas pungentes de
perseguição, homofobia policial, espancamentos e outras "torturas" que
viu serem perpetradas sobre homossexuais, lembrando, ainda e antes, o
modo como ele mesmo gozara, na precocidade da sua adolescência, colegas e
dissera as mesmas palavras de ódio, como que tentando extirpar a dúvida
sobre a sua orientação e extirpar, mesmo, essa parte de si - o fez
penetrar, profundamente, na filosofia (fosse na sua história, fosse,
muito especialmente, no conhecimento do pensamento contemporâneo e seus
mais insignes cultores).
Para Eribon, só quem pertence à classe dominante não sente pertencer a uma classe, da mesma maneira que numa sociedade homogénea branca ninguém sente a cor da pele...a não ser que seja negro. Com Sartre, e contra Aron (que qualifica como "superficial"), assim a auto-biografia carregada de sociologia e ideologicamente marcada de Didier Eribon.
Para Eribon, só quem pertence à classe dominante não sente pertencer a uma classe, da mesma maneira que numa sociedade homogénea branca ninguém sente a cor da pele...a não ser que seja negro. Com Sartre, e contra Aron (que qualifica como "superficial"), assim a auto-biografia carregada de sociologia e ideologicamente marcada de Didier Eribon.
Pedro Miranda
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