José
João Eira, médico internista no Centro Hospitalar
de Trás-os-Montes e Alto Douro (CHTMAD), veio à Escola de S.Pedro falar
sobre a eutanásia. Estiveram presentes os alunos do 10.º TGEI, do 10.º G e do 9.º ano. Atividade organizada pelo Pedro Miranda que nos oferece também o texto introdutório.
“A dignidade não desaparece com a
doença, e a morte não vai conferir dignidade à pessoa”
O
voluntarismo legiferante do poder político imiscuiu-se num santuário sagrado que o internista,
diariamente antecipando, no espelho do rosto do outro, o que será, entende
dever fechado à dogmática (jurídica):
que é isso do “sofrimento inultrapassável”, que trespassa tanto o jovem cuja
relação apaixonada declinou, quanto o doente oncológico caminhando para uma
irreversibilidade dorida, como se mede, cinde (?) e (des)qualifica a dor física
e psicológica, afinal “há uma escala de 0 a 10 para a dor de cabeça”, dor essa,
“a mesma”, que a Renata dirá rondar o 9 e o Pedro apenas o 5? Numa palavra,
como sondar, sindicar, como aquilatar e tornar “técnica” a concretização de um conceito indeterminado como “sofrimento
inultrapassável” que os projectos de lei
que visam despenalizar a prática da eutanásia, em Portugal, colocam como quesito a cumprir? Assim, com uma
“provocação”, principiou José João Eira a conversa com os alunos do Secundário
e, posteriormente, do 9º ano acerca da delicada questão do suicídio assistido.
O
médico assegurou que “não há sofrimentos intratáveis” – e “eu também tenho medo de sofrer” - e que permitir a eutanásia
implicaria ir contra, ou necessariamente alterar, um juramento de Hipócrates com que todos os médicos se comprometeram.
Em realidade, “a morte faz parte da
vida” e a retoma desta ao nosso horizonte cultural – do qual foi apagada -
poderia ser determinante para que cada um fosse tudo, e todo, em cada instante.
Lidar, diariamente, com a morte (“todos vamos morrer, não sei se já deram conta…”,
reforçou, ironizando), como acontece a este profissional, fez com que passasse
a ter “maior tolerância com os outros”
e percebesse como é a solidão – “hoje os hospitais estão cheios de velhinhos
deixados pelas famílias” – que gera a angústia ou o desespero aptos a
progredirem para pedidos eivados de um grito que tantos se recusaram a evitar.
Sim, confessa o médico: “já me pediram a
eutanásia”.
A
rede de cuidados paliativos do distrito de Vila Real, situada em Vila Pouca de
Aguiar, dispõe apenas de 12 camas. Ao Estado fica bem mais caro alargar
substantivamente esta rede do que promover a alteração legislativa em
discussão, o mesmo é dizer que até razões economicistas
aqui poderiam, por absurdo, ser trazidas à liça. Não, ninguém é dispensável,
não pode haver descartáveis: mesmo
depois de passar o período de vida activa, mesmo depois de cada um deixar de
ser produtivo (economicamente), cada pessoa é necessária: “todos nós prestamos para alguma
coisa. Aquele velhinho, mesmo acamado, faz falta a alguém”.
A
turma do 9º ano trazia muita curiosidade e perguntas a colocar; preparou-se,
fez, rigorosamente, o trabalho de casa
e, por entre as boas perguntas da Catarina
Monteiro, da Vânia Leitão, da Joana Ramos, da Carolina Soares ou do Gabriel
Morais, o António Reis, que nas
aulas se pronunciara contra a eutanásia, porque uma cura, uma descoberta
científica de última hora pode salvar uma vida que se julgara fatalmente
perdida – assim se indagando, no fundo, da absoluta certeza/fiabilidade de cada
diagnóstico e prognóstico médicos – interrogava agora acerca do sofrimento dos
doentes com Alzheimer, aqueles que pela perda da memória deixariam de ser quem eram, perdendo o sentido de unidade (o “eu”) que
haviam transportado décadas a fio (assim, retomando o aluno, o questionamento
do heterodoxo – em matéria de eutanásia - teólogo católico Hans Kung): “sofrem mais as pessoas que lidam com doentes com
Alzheimer do que os doentes: estes, desde que os vistam, lavem, lhes dêem de
comer têm o seu conforto. É quem imagina como será estar naquela posição,
supondo mais do que sabendo, que mais sofrerá”, assegurou o profissional de
saúde.
O
médico não é a figura impenetrável e imbatida,
um deus ex machina que alguns podem
supor: no exercício de transmissão de uma experiência, essa única e irrepetível
que toca o mistério mais denso do outro pelo qual sou responsável, há um lugar, singular e definitivo, a tarde
suspensa por instantes, para o morto
“que me pesa”, aquele a quem faltou dar “uma maior dose de morfina”, porque
assim “acalmaria” mais intensamente o seu sofrimento, e mesmo “a mão” não amparou, dessa vez, como
devia, e como sucedeu em tantas situações subsequentes – “o toque é fundamental” – o homem que sucumbiria horas depois.
Num
relato genuíno e convicto – evidentemente, não apenas longe de poder esgotar
todas as questões que confinam com a eutanásia, bem como de representar, por
completo, a imensa pluralidade de posicionamentos que há, na comunidade médica
e na sociedade portuguesa, sobre o delicadíssimo tema -, José João Eira teve
duas plateias interessadas em procurar abeirar-se com maior profundidade desta
questão candente que trazemos connosco e que o país discute crescentemente por
estes dias.
Pedro
Miranda
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