Um elixir excessivamente ansioso
Até ao séc.XX, 1/3 da população não
chegava à idade adulta devido a uma doença; de resto, a gripe espanhola,
mataria mais pessoas - 50 a 100 milhões, do que a Primeira Guerra Mundial (40
milhões). Historicamente, a peste negra (inicia-se em 1330)
matara entre 75 e 200 milhões de pessoas, mas não fora um acontecimento
excepcional nem sequer a pior peste da história. 1979 marca o ano da 1ª
epidemia que a humanidade conseguiu eliminar da face da Terra, com a
erradicação da varíola. Nas sociedades agrícolas, a guerra, por sua vez,
causara o desaparecimento de 15% da população; no século XX, foi responsável
por 5% das mortes, e no séc.XXI, até ao momento, por 1%. Assim, em 2012 morreu
mais gente por diabetes e suicídio do que por via da guerra. Neste sentido,
pode dizer-se que "o açúcar é agora mais perigoso do que a pólvora"
(p.26), ou, noutra formulação possível, "para o norte-americano, ou
europeu médio, a Coca-Cola representa uma ameaça maior do que
a Al Qaeda" (p.29). Repare-se que, em 2010, morreram 7697 pessoas fruto de
terrorismo, no mundo, a maioria das vítimas vivendo em países em vias
de desenvolvimento; mas, ao mesmo tempo, morreram 3 milhões de pessoas em
virtude da obesidade e doenças associadas.
Apesar de, em França, 10% da população
padecer de insegurança nutricional, hoje, na maior parte dos países, mesmo que
alguém perca o trabalho é improvável que morra de fome, esta que chegou a ser,
historicamente, a causa de 1/5, 1/4 ou 1/3 das mortes de uma dada população.
Assim, Yuval Noah Harari sem
querer parecer excessivamente ingénuo, cínico ou triunfante - e para isso
alertando ao longo do texto diversas vezes: ainda há muita gente que sofre com
a fome, doenças ou conflitos bélicos, e nada nos garante que estes últimos, em
particular, estejam superados -, entende que a um nível macro é patente que as
grandes causas de sofrimento conhecidas até hoje pela humanidade - guerra, peste, fome -
se encontram em vias de dar lugar a outras demandas, porque a "história
tem horror ao vazio"(p.31) e, talvez, não nos iremos dedicar, em
exclusivo, "a escrever poesia": o tríptico acabado de enunciar
será, então, substituído, segundo o académico em causa, pelos desejos de imortalidade, felicidade e divindade (o
homem colocar-se no lugar de Deus). Não faltam os magos que consideram a
imortalidade como um passo inevitável, aduzindo, não raramente, datas para a
concretização do dito desiderato (alguns peritos apontam para 2100 ou 2200 o
ano em que os humanos vencerão a morte). Acontece, desde logo, que os níveis de
ansiedade seriam inéditos: enquanto um mortal dos nossos dias vai trabalhar,
jantar fora, ou passear conhecendo a sua finitude (mesmo que não imediata), um
imortal, sabendo da sua imortalidade, certamente se impacientaria de um modo
outro só de imaginar poder perder, num qualquer acidente, a imortalidade que
não havia sido dada a ninguém da mesma espécie, em tempos pretéritos. Harari
centra, contudo, a sua exposição primeira, em descortinar consequências - algo
que quer a literatura propriamente dita, quer o ensaio têm feito, e mais irão
fazer à medida que crescem as possibilidades biotecnológicas para o humano - de
uma simples (quando comparada com a imortalidade) duplicação da esperança média
de vida. Imaginemo-nos, portanto, a durar até aos 150/160 anos. Se nos
casássemos aos 40 anos, conseguiríamos manter um casamento durante 110 anos?
Nem os católicos mais fundamentalistas a isso obrigariam, afiança, com graça, o
ensaísta. E o cuidar dos filhos? Pois, dada a nova duração humana, tratar-se-ia
de uma recordação menor, ou, pelo menos, não tão relevante como agora nas
nossas vidas. A reforma, como é óbvio, estaria longe de poder ocorrer aos 65
anos. E na política, como aguentaríamos mais 90 anos com Putin no poder, na
Rússia?
Doce, ou amargo enlevo para alguns:
"pior do que viver sabendo que se vai morrer é acreditar que se vai ser
imortal e descobrir que não": "a verdade é que a medicina moderna não
prolongou a duração natural da nossa vida em um só ano" (p.39) . Para o
fazer, a medicina "necessitará de redesenhar as estruturas e processos
mais fundamentais do corpo humano e descobrir como regular órgãos e
tecidos". E não é claro que o consiga fazer até 2100.
Numa palavra, em 1900 a esperança média de
vida era de 40 anos. A biotecnologia, que agora afasta vírus e bactérias,
converte os humanos numa ameaça para si mesmos.
Pedro Miranda
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