Seleção da semana
Pedro Miranda
“Esta perspetiva fez-nos
pensar que o fascismo talvez devesse ser encarado menos como ideologia
política e mais como um meio para conquistar e manter o poder. Por
exemplo, a Itália dos anos 1920
incluía fascistas confessos de esquerda (que defendiam a ditadura dos
despojados), de direita (que defendiam o Estado corporativo autoritário) e de
centro (que pretendiam o regresso à monarquia absolutista). O Partido Nacional-Socialista Alemão (os
nazis) formou-se em torno de uma lista de reivindicações que apelava aos antissemitas,
anti-imigrantes e anticapitalistas, mas que defendia também pensões de velhice
mais elevadas, mais oportunidades de educação para os pobres, o fim do trabalho
infantil e melhores cuidados de saúde materno-infantil. Os nazis eram racistas
e ao mesmo tempo, no seu entender, reformadores.
(...)
Na minha ideia, fascista é alguém que se
identifica fortemente com uma nação inteira ou com um grupo e que reivindica
falar em seu nome, alguém que não se preocupa com os direitos dos outros e que
está na disposição de usar todos os meios necessários - incluindo a violência -
para alcançar os seus objetivos. Dentro desta conceção, um fascista será talvez
um tirano, mas o tirano não tem de ser fascista. (...) Um
fascista (...) espera
que a multidão esteja na disposição de o apoiar e defender. Enquanto os reis
tentam acalmar o povo, os fascistas agitam-no de modo a que, quando o combate
começar, os seus soldados de infantaria tenham a vontade e o poder de fogo para
serem os primeiros a disparar.
O fascismo nasceu nos começos do século XX. Uma época de animação intelectual e de ressurgimento do nacionalismo
ligado a um desapontamento generalizado com a incapacidade dos parlamentos
representativos de acompanharem o ritmo de uma Revolução Industrial movida pela
tecnologia. Nas décadas
anteriores, eruditos como Thomas Malthus, Herbert Spencer, Charles Darwin e o
meio-primo de Darwin, Francis Galton, tinham difundido a ideia de que a vida é
uma luta constante pela adaptação, com pouco espaço para o sentimento e sem
garantia de progresso. Pensadores
influentes como Nietzsche e Freud, refletiram sobre as implicações de um mundo
que parecia ter-se libertado das amarras tradicionais. As sufragistas
introduziram a noção revolucionária de que as mulheres também têm direitos. Os
líderes de opinião na política e nas artes falavam abertamente da possibilidade
de melhorar a espécie humana através da reprodução seletiva.
Entretanto, inventos assombrosos como a eletricidade,
o telefone, a carruagem sem cavalos e os navios a vapor aproximavam mais o
mundo, e, no entanto, esses inventos deixavam sem emprego milhões de
agricultores e operários especializados. Por toda a parte, as pessoas movimentavam-se:
as famílias rurais afluíam às cidades em grande número e milhões de europeus
dirigiam-se para o outro lado do oceano.
Para muitos dos que ficaram, as promessas
inerentes ao Iluminismo e às Revoluções Francesa e Americana tinham-se tornado
vazias. Inúmeras pessoas não conseguiam encontrar trabalho; as que trabalhavam eram muitas vezes exploradas ou, mais tarde,
sacrificadas no sangrento jogo de xadrez que se desenrolava nos campos de
batalha da Primeira Guerra Mundial. Winston Churchill escreveu acerca dessa
tragédia: «Foram infligidas feridas na estrutura da sociedade humana que um
século não conseguirá sarar». Mas com a aristocracia desacreditada, a religião sob escrutínio e as
velhas estruturas políticas, com o Império Otomano e o Austro-Húngaro, a
desmoronar-se, a procura de respostas não podia esperar.”
Como é que os autoritários eleitos destroem as instituições democráticas
que se supõe constrangê-los? Alguns fazem-no com um único golpe. Mas, na
maior parte das vezes, o ataque à democracia começa devagar. Para muitos cidadãos, pode, a
princípio, ser impercetível. Afinal, continua a haver eleições. Os
políticos da oposição continuam a ter representação nas assembleias. Os jornais
independentes ainda circulam. A erosão da democracia tem lugar aos
bocadinhos, muitas vezes com passinhos de bebé. Cada passo individual parece
ser pequeno; nenhum parece ameaçar verdadeiramente a democracia. Na
verdade, as medidas governamentais para a subversão da democracia
possuem muitas vezes uma capa de legalidade: são aprovadas pelos parlamentos ou
consideradas constitucionais pelos tribunais superiores. Muitas
delas são adotadas a coberto do cumprimento de objetivos públicos legítimos, e
até louváveis, como o combate à corrupção, «limpeza» das eleições, a melhoria
da qualidade da democracia ou o reforço da segurança nacional.
Para que melhor se compreenda como os autocratas eleitos sabotam
subtilmente as instituições, ajuda imaginar um jogo de futebol. No sentido de
consolidar o poder, os aspirantes a autoritários têm de fazer dos
árbitros reféns, pôr de parte pelo menos alguns dos principais jogadores da
equipa adversária e reescrever as regras do jogo para garantir que têm
vantagem, enviesando, na prática, o relvado contra os seus adversários.
Ajuda sempre ter os árbitros do nosso lado. Os Estados modernos dispõem de
várias agências com autoridade para investigar e castigar delitos, tanto dos
funcionários públicos como dos cidadãos privados. Estes incluem o
sistema judicial, as forças de segurança e as agências
de informações fiscais e reguladoras. Nas democracias, tais
instituições são concebidas para servir enquanto árbitros neutrais.
Assim, para os aspirantes a autoritários, os órgãos judiciais e as
forças de segurança são tanto um desafio como uma oportunidade. Se
continuarem a ser independentes, poderão expor e punir os abusos
governamentais. Afinal, é dever do árbitro castigar a batota. Mas se estas
agências forem controladas por apoiantes leais, podem servir os objetivos de um
aspirante a ditador, protegendo o governo de investigações e acusações
criminais que possam levar à sua retirada do poder. O presidente
pode infringir a lei, ameaçar os direitos dos cidadãos e até violar a
Constituição sem ter de se preocupar com o facto de tais abusos virem a ser
investigados ou censurados. Com os tribunais preenchidos e as autoridades sob
controlo, os governos podem agir com impunidade.
Fazer dos árbitros reféns dá ao governo mais do que um escudo. É também uma
arma poderosa que lhe permite fazer cumprir a lei seletivamente, castigando os
adversários e protegendo os aliados. As autoridades fiscais podem ser usadas para atingir políticos
rivais, empresas e órgãos de comunicação social. A polícia pode
reprimir protestos da oposição enquanto tolera atos de violência de arruaceiros
pró-governamentais. As agências de informação podem ser usadas para espiar
críticos e encontrar material de chantagem.
Na maior parte dos casos, os árbitros são feitos reféns quando pela calada,
se despedem funcionários públicos e outros funcionários não partidários,
substituindo-se estes por apoiantes leais. Na Hungria, após regressar
ao poder em 2010, o primeiro-ministro Víktor Orbán preencheu o Ministério
Público, o Tribunal de Contas, o Gabinete do Provedor de Justiça, o Instituto
Nacional de Estatística e o Tribunal Constitucional, instituições nominalmente
independentes, com aliados partidários.
As instituições que não podem ser purgadas facilmente podem ser
desvirtuadas, subtilmente, por outros meios. Poucos o fizeram melhor do que Vladimiro
Montesinos, o «consultor de informações» de Alberto Fujimori. Sob a direcção de
Montesinos, o Serviço Nacional de Informações do Peru filmou em vídeo centenas
de políticos da oposição, juízes, deputados, empresários, jornalistas e
editores a pagar ou receber subornos, a entrar em bordéis, ou a realizar outras
atividades ilícitas - e usou em seguida as gravações para os chantagear.
Também manteve três juízes do Supremo Tribunal, dois membros do Tribunal
Constitucional e um número «estonteante» de juízes e procuradores públicos na
sua folha de pagamentos, entregando estipêndios mensais em dinheiro vivo em
suas casas. Tudo isto
era feito em segredo; à superfície, o sistema judicial peruano funcionava como
qualquer outro. Mas, na sombra, Montesinos ajudava Fujimori a consolidar o
poder.
Os juízes que não podem ser comprados podem ser alvo de destituição. Quando
Perón assumiu a presidência em 1946, quatro dos cinco membros do Supremo
Tribunal da Argentina eram adversários conservadores, e um deles tinha-lhe
chamado fascista. Preocupados com o historial do tribunal no sentido de abolir
legislação pró-laboral, os aliados de Perón no Congresso Nacional abriram um
processo de destituição contra três dos juízes, por prevaricação (um quarto
juíz demitiu-se antes de poder ser destituído). Perón nomeou então quatro
apoiantes leais - e o tribunal nunca mais voltou a opor-se-lhe. Do mesmo modo,
quando o Tribunal Constitucional do Peru ameaçou bloquear a candidatura do presidente
Fujimori a um terceiro mandato em 1997, os aliados de Fujimori no Congresso da
República destituíram três dos sete juízes do órgão - alegando que, ao declarar
a tentativa de Fujimori de fugir aos limites constitucionais de mandato
«inconstitucional», eles próprios incorriam numa violação da Constituição.
Os governos que não conseguem remover os juízes independentes podem
contorná-los através do preenchimento do tribunal. Na Hungria, por
exemplo, o governo de Órban expandiu o tamanho do Tribunal Constitucional de 8
para 15 juízes, mudou as regras de nomeação para que o Partido Fidesz no
governo pudesse nomear, sozinho, os novos juízes e depois ocupou as novas
posições com apoiantes do Fidesz. Na Polónia, o Partido Lei e
Justiça no governo viu várias das suas iniciativas bloqueadas pelo Tribunal
Constitucional - a maior autoridade do país em questões constitucionais - entre
2005 e 2007. Quando o partido regressou ao poder em 2015, deu passos para
evitar perder semelhantes no futuro. Nessa altura, havia duas vagas no Tribunal
Constitucional, com 15 membros, e três juízes que haviam sido aprovados pelo
Parlamento de saída, mas que ainda não tinham prestado juramento. Num movimento
de constitucionalidade dúbia, o novo governo Lei e Justiça recusou-se a autorizar
que os três juízes prestassem juramento e impôs, em vez disso, cinco novos
juízes próprios. Aproveitou igualmente para passar uma lei a exigir que todas
as decisões vinculativas do Tribunal Constitucional tivessem uma maioria de
dois terços. Isto deu, na prática, aos aliados governamentais poder de veto
dentro do tribunal, limitando as capacidades do órgão de funcionar como fiscal
independente do poder governamental.
O modo mais extremo de fazer dos árbitros reféns é arrasar de vez os
tribunais e criar tribunais novos. Em 1999, o governo de Chávez convocou
eleições para uma Assembleia Constituinte que, em violação de uma decisão
prévia do Supremo Tribunal, outorgou a si própria o poder de dissolver todas as
outras instituições estatais, incluindo aquele tribunal. Receando pela sua
sobrevivência, o Supremo anuiu e considerou o ato constitucional. A presidente
do Supremo Tribunal, Cecília Sousa, demitiu-se, declarando que o tribunal havia
«cometido suicídio para evitar ser assassinado».«Mas o resultado é o mesmo.
Está morto», disse. Dois meses mais tarde, o Supremo Tribunal foi dissolvido e
substituído por um novo Supremo Tribunal de Justiça. No entanto, nem isso foi
suficiente para garantir uma magistratura flexível, pelo que, em 2004, o
governo de Chávez expandiu a dimensão do Supremo Tribunal de 20 para 32 lugares
e preencheu os novos cargos com apoiantes «revolucionários» leiais. Foi o
suficiente. Ao longo dos nove anos seguintes, nem uma decisão do Supremo foi
contra o governo.
Em cada um destes casos, os árbitros do jogo democrático foram trazidos
para o lado do governo, fornecendo ao Presidente em exercício um escudo contra
os desafios constitucionais e uma arma poderosa - e «legal» - para atacar os
adversários.
Comentários