Este livro, Se Isto é um homem. E a educação dos jovens. Nos lager, procurou-se despojar o humano de si mesmo, lá onde um floco
de neve pode ser o melhor dos manjares, execravelmente roubado por um capo
nazi, ali onde se observa como os homens e as mulheres suplantaram todos os
limites que julgavam serem seus e a sobrevivência é arrancada a condições
infra-humanas, em combates onde se perdem amigos íntimos, mãe ou irmãs roubadas
á vida, e em que um pai se pode converter em um estorvo, lugar onde a
propriedade, a posse, aquilo que é meu,
foi abolida para os prisioneiros e, assim, pode um simples barbear, o respeito
por si mesmo, ser decisivo, a importância, ainda paradoxal da cultura (Primo
Levi a sustentar-se na Divina Comédia,
de Dante, face a verdugos da Alemanha de Kant, cujo imperativo categórico não desconheciam)[1], a pergunta
não é, somente, onde estava Deus –
“Nunca mais esquecerei esta
noite, a primeira noite no campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete
vezes aferrolhada. Nunca mais esquecerei aquele fumo. Nunca mais esquecerei as
pequeninas caras das crianças cujos corpos eu tinha visto transformarem-se em
espirais sob um azul mudo. Nunca mais esquecerei estas chamas que consumiram
para sempre a minha fé. Nunca mais esquecerei este silêncio nocturno que me
privou, para a eternidade, do desejo de viver. Nunca mais esquecerei estes
momentos que assassinaram o meu Deus e a minha alma, e os meus sonhos, que
tomaram a aparência de um deserto. Nunca mais esquecerei isto, mesmo que tenha
sido condenado a viver tanto tempo quanto próprio Deus”[2] –
mas,
ainda, e fundamentalmente (porque Deus não acontece sem humanas mediações),
onde se encontrava o Homem – com o que mostrou ser capaz de fazer a outro
Homem.
Se me
perguntassem por um livro a oferecer a um filho, aos 17 anos, seria este. Se me
perguntassem por um livro capaz de fazer o continuum
entre instrução (a acepção de educação mais vezes acometida à escola;
a educação enquanto transmissão de
conhecimentos) e educação (na
acepção de educação mais vezes
acometida à família; a educação como transmissão
de valores), portanto, se me perguntassem por uma obra que, simultaneamente
transmitisse conhecimentos – o que foi a noite do século XX – e valores – nunca
deixes, com a tua geração, que isto se repita – seria este. Descida última e
inolvidável à mais funda Invernia de mim
– que carácter é o meu, se, em certas circunstâncias, o Homem é capaz de fazer
isto ao Homem, e eu pertenço a esta espécie e condição? – e ao paradoxo que
reverbera nas questões ontológicas e cósmicas densas. E crer, ainda,
profundamente em ti, capaz de perscrutares no outro uma dignidade (valor)
impossível de tornar num meio, sempre um fim (mesmo que ninguém esteja a ver).
Capaz de dizeres, como disse Etty Hillesum, na maior experiência espiritual do
séc.XX, num campo de concentração: Deus,
quando tu não me puderes ajudar, eu vou estar aqui para te ajudar (a Ti).
Combater o (pelo) último reduto, aquele que ninguém nos poder tirar, roubar, o
mais íntimo gravado em nós, porque um
saber de cor é um saber de coração. De aí a importância da arte, de aí o
saber de cor poemas, pedaços de texto, músicas, filmes que fixem esse
concentrado.
[1] Cf. Primo LEVI, Se isto é um homem, D.Quixote, Lisboa,
2010. A descrição dos campos, particularmente de Auschwitz, vinda de produzir,
apoia-se no relato seminal de Primo Levi.
[2] Elie WIESEL, Noite, Texto Editora, Lisboa, 2003, 42. Em todo o caso, Wiesel
dirá, posteriormente, que “Não creio que – após Auschwitz – possamos falar de Deus, podemos apenas, como dizia
Kafka, falar com Deus (…) Mesmo
quando falo contra Ele, estou sempre
a falar com Ele. E quando estou furioso com Deus e tento mostrar-lhe a minha
raiva, reside justamente aí um reconhecimento de Deus, não uma negação de
Deus”. Apud. Tomás HALÍK, O meu Deus é um
Deus ferido, 68.
Pedro Miranda
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