"Embora
eu soubesse que éramos apenas os guardiões do jardim e da casa, sentia
que os livros, esses, me pertenciam, eram parte do meu ser. Costumamos
dizer que algumas pessoas nunca nos prestam atenção nem ajuda. Já eu,
raramente empresto um livro. Se quero que alguém leia um certo livro,
compro um exemplar e ofereço-lho. Acredito que emprestar um livro é
incitar ao furto. A biblioteca pública de uma das minhas escolas
mostrava um aviso que tinha tanto de exclusão como de generosidade:
«ESTES LIVROS NÃO SÃO SEUS: PERTENCEM A TODOS». A minha biblioteca nunca
poderia ter um aviso destes. Para mim, era um lugar absolutamente
privado, que me cercava e, simultaneamente, me reflectia. (...)
Muitas
vezes senti que a minha biblioteca explicava quem eu era, me conferia
um eu sempre em mudança, que se transformava constantemente ao longo dos
anos. E, porém, apesar disso, a minha relação com as bibliotecas sempre
foi estranha. Adoro o espaço de uma biblioteca. Adoro edifícios
públicos que se erguem como emblemas de identidade que uma sociedade
escolhe ter, imponentes ou discretos, intimidantes ou familiares. Adoro
as infindáveis filas de livros cujos títulos tento ler naquela escrita
vertical que tem de ser lida (nunca descobri porquê) de cima para baixo
em inglês e italiano e de baixo para cima em alemão e espanhol. Adoro os
sons abafados, o silêncio meditativo, o brilho contido dos candeeiros
(especialmente se forem de vidro verde), as secretárias polidas pelos
cotovelos de várias gerações de leitores, o cheiro do pó, do papel, da
pele, ou os cheiros novos das secretárias plastificadas e dos produtos
de limpeza com aroma adocicado. Adoro o olho que tudo vê do posto de
informações e a solicitude sibilina dos bibliotecários. Adoro os
catálogos, especialmente as velhinhas gavetas de cartões (onde ainda
sobrevivem), com as suas oferendas dactilografadas ou manuscritas.
Quando estou numa biblioteca, qualquer biblioteca, tenho a sensação de
ser transportado para uma dimensão puramente verbal, por um passe de
magia que nunca compreendi inteiramente. Sei que a minha verdadeira
história, toda ela, está lá, algures nas prateleiras, e tudo o que
preciso é de tempo e de sorte para a encontrar. Nunca acontece. A minha
história continua a escapar-me, porque nunca é a história definitiva.
(...) Penso em «biblioteca» e sou imediatamente dominado pelo paradoxo
de que uma biblioteca mina qualquer ordem que possua, com combinações
fortuitas e fraternidades acidentais, e que se eu, ao invés de me ater
ao convencional caminho alfabético, numérico ou temático que uma
biblioteca estabelece para me guiar, pelo contrário me deixar tentar
pelas afinidades não-electivas, o meu objecto deixa de ser a biblioteca e
passa a ser o feliz caos do mundo que a biblioteca tenciona ordenar.
Ariadne transformou o labirinto num caminho claro e simples para Teseu; a
minha mente transforma o caminho simples num labirinto. (...) Não gosto
que me proíbam de escrever nas margens dos livros que levo de
empréstimo. Não gosto de ter de devolver livros, quando descubro neles
algo fascinante ou precioso. Como um saqueador ganancioso, quero que os
livros que leio sejam meus.
Talvez
por isso não me sinta à vontade numa biblioteca virtual: não se pode
possuir um fantasma (embora o fantasma nos possa possuir). Quero a
materialidade das coisas verbais, a presença sólida do livro, a forma, o
tamanho, a textura. Compreendo a conveniência dos livros imateriais e a
importância que têm numa sociedade do século XXI, mas, para mim, têm a
qualidade das relações platónicas. Talvez por isso sinta tão
profundamente a perda de livros que as minhas mãos conheciam tão bem.
Sou como Tomé, preciso de tocar para acreditar".
Alberto Manguel, Embalando a minha biblioteca, Tinta da China, 2018, pp.14-21
Partilha do Pedro Miranda
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