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Embalando a minha biblioteca de Alberto Manguel

 
 
 
 
 
"Embora eu soubesse que éramos apenas os guardiões do jardim e da casa, sentia que os livros, esses, me pertenciam, eram parte do meu ser. Costumamos dizer que algumas pessoas nunca nos prestam atenção nem ajuda. Já eu, raramente empresto um livro. Se quero que alguém leia um certo livro, compro um exemplar e ofereço-lho. Acredito que emprestar um livro é incitar ao furto. A biblioteca pública de uma das minhas escolas mostrava um aviso que tinha tanto de exclusão como de generosidade: «ESTES LIVROS NÃO SÃO SEUS: PERTENCEM A TODOS». A minha biblioteca nunca poderia ter um aviso destes. Para mim, era um lugar absolutamente privado, que me cercava e, simultaneamente, me reflectia. (...)
Muitas vezes senti que a minha biblioteca explicava quem eu era, me conferia um eu sempre em mudança, que se transformava constantemente ao longo dos anos. E, porém, apesar disso, a minha relação com as bibliotecas sempre foi estranha. Adoro o espaço de uma biblioteca. Adoro edifícios públicos que se erguem como emblemas de identidade que uma sociedade escolhe ter, imponentes ou discretos, intimidantes ou familiares. Adoro as infindáveis filas de livros cujos títulos tento ler naquela escrita vertical que tem de ser lida (nunca descobri porquê) de cima para baixo em inglês e italiano e de baixo para cima em alemão e espanhol. Adoro os sons abafados, o silêncio meditativo, o brilho contido dos candeeiros (especialmente se forem de vidro verde), as secretárias polidas pelos cotovelos de várias gerações de leitores, o cheiro do pó, do papel, da pele, ou os cheiros novos das secretárias plastificadas e dos produtos de limpeza com aroma adocicado. Adoro o olho que tudo vê do posto de informações e a solicitude sibilina dos bibliotecários. Adoro os catálogos, especialmente as velhinhas gavetas de cartões (onde ainda sobrevivem), com as suas oferendas dactilografadas ou manuscritas. Quando estou numa biblioteca, qualquer biblioteca, tenho a sensação de ser transportado para uma dimensão puramente verbal, por um passe de magia que nunca compreendi inteiramente. Sei que a minha verdadeira história, toda ela, está lá, algures nas prateleiras, e tudo o que preciso é de tempo e de sorte para a encontrar. Nunca acontece. A minha história continua a escapar-me, porque nunca é a história definitiva. (...) Penso em «biblioteca» e sou imediatamente dominado pelo paradoxo de que uma biblioteca mina qualquer ordem que possua, com combinações fortuitas e fraternidades acidentais, e que se eu, ao invés de me ater ao convencional caminho alfabético, numérico ou temático que uma biblioteca estabelece para me guiar, pelo contrário me deixar tentar pelas afinidades não-electivas, o meu objecto deixa de ser a biblioteca e passa a ser o feliz caos do mundo que a biblioteca tenciona ordenar. Ariadne transformou o labirinto num caminho claro e simples para Teseu; a minha mente transforma o caminho simples num labirinto. (...) Não gosto que me proíbam de escrever nas margens dos livros que levo de empréstimo. Não gosto de ter de devolver livros, quando descubro neles algo fascinante ou precioso. Como um saqueador ganancioso, quero que os livros que leio sejam meus.
Talvez por isso não me sinta à vontade numa biblioteca virtual: não se pode possuir um fantasma (embora o fantasma nos possa possuir). Quero a materialidade das coisas verbais, a presença sólida do livro, a forma, o tamanho, a textura. Compreendo a conveniência dos livros imateriais e a importância que têm numa sociedade do século XXI, mas, para mim, têm a qualidade das relações platónicas. Talvez por isso sinta tão profundamente a perda de livros que as minhas mãos conheciam tão bem. Sou como Tomé, preciso de tocar para acreditar".

Alberto Manguel, Embalando a minha biblioteca, Tinta da China, 2018, pp.14-21
 
Partilha do Pedro Miranda

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