Avançar para o conteúdo principal

Identidades de F. Fukuyama



Talvez o politólogo Francis Fukuyama seja um bom, porque um ilustrativo guia, para compreendermos o que mudou na política internacional desde que, em 1992, publicou O fim da história e o último homem – célebre ensaio no qual, na senda de Hegel, preconizava que a finalidade da História era uma sociedade liberal-democrática com economia de mercado – até à actual edição de Identidades, o seu novo livro no qual assume duas mudanças essenciais no seu pensamento político: i) o reconhecimento de que é muito difícil erguer-se um Estado moderno, impessoal; ii) a possibilidade de que a democracia liberal moderna decaia ou ande para trás (quer dizer, Estados que chegaram a democratas possam retroceder no regime político adoptado).
Em 1970, havia no mundo 30 «democracias eleitorais», mas em meados dos anos 2000 estas haviam chegado a um número que se aproximava das 120 (p.13). Contudo, "algures na segunda década dos anos 2000" tais democracias recuaram, passando, nas palavras de Larry Diamond, por uma «recessão global». 
À expansão democrática, na sequência da queda do muro de Berlim, com o fim da antiga URSS e dos regimes comunistas no Leste europeu - ambiente/espírito no qual se enquadrou "O fim da história" de Fukuyama, rapidamente considerado de uma confiança, ingenuidade ou arrogância excessiva na idealização de um modelo político-económico único a uma escala global, indiferente a culturas, geografias, histórias, resultados económicos muito diversificados - sucedeu um retrocesso contemporâneo concomitante a x) uma aceleração da globalização e a xx) uma crise financeira-económica-social, com o seu cortejo de falências, desemprego, quebra do rendimento de milhões de trabalhadores em todo o mundo, ou seja, na síntese do investigador, "as políticas da elite produziram" grandes problemas (p.23). Países autoritários como a China e a Rússia tornaram-se mais "auto-confiantes e afirmativos". Passaram a emergir as chamadas «democracias iliberais» - e, aos exemplos mais habituais neste contexto, Fukuyama acrescenta, ainda, o caso da Tailândia (p.23). O descalabro da invasão do Iraque, e mesmo a intervenção no Afeganistão, iriam conduzir à radicalização (religiosa/política) de milhões de pessoas.
Se a política do séc.XX parecia organizada em torno do binómio esquerda-direita atinente a questões de tipo económico - a esquerda reclamando mais igualdade, a direita mais liberdade; as ditas "políticas progressistas" centradas nos trabalhadores, nos sindicatos e em partidos social-democratas que pretendiam melhores prestações sociais e melhor distribuição da riqueza, enquanto a direita se preocupava em reduzir o tamanho do estado e em promover a iniciativa privada (p.24), a certo momento da última década tais agendas, não tendo desaparecido, pareceram dar o lugar "a um espectro definido pela identidade". A esquerda procurou promover uma ampla variedade de grupos - negrosmulheresimigranteshispânicoscomunidade LGBT - e a direita passou a um discurso em chave patriótica, ou mesmo nacionalista, associada esta a uma dada raça, etnia ou religião (isto é válido para o caso americano, mas não só).
Fukuyama reconhece, neste livro, a centralidade das questões económicas no agir humano - e daí os problemas fundamentais identificados (ausência de resposta aos afectados pela globalização e perda de rendimentos na sequência da longa crise iniciada em 2008) -, mas recusa o exclusivo motivacional deste: sem um quadro de «ressentimento» devidamente mobilizado, sedutor da parte da psique/alma humana que aspira ao reconhecimento (o thymos), as mudanças políticas a que estamos a assistir não teriam ocorrido: "o thymos é a parte da alma que almeja o reconhecimento da nossa dignidade; a isotimia é a exigência de se ser respeitado na base da igualdade com as outras pessoas; a megalotimia é o desejo de ser reconhecido como superior. As democracias liberais modernas prometem, e em larga medida oferecem, um grau mínimo de igual respeito, encarnado nos direitos humanos, o primado da lei e o direito ao voto. O que isso não garante é que numa democracia as pessoas sejam respeitadas igualmente na prática, em particular os membros de grupos com um historial de marginalização" (p.15). Outro problema é a recorrente existência histórica da megalotimia, que tanto deu origem a heróis como Churchill, ou «santos seculares» como Mandela, como tragédias como as de Hitler ou Mao. Possuirá a democracia liberal, ligada a uma economia de mercado, saídas para a megalotimia? Em O fim da história e o ultimo homem, Fukuyama, ironia da história, citava o exemplo de um tal Donald Trump que fazia desaguar a sua ambição e megalomania para o mundo empresarial. O que em 1992, com Trump no lugar de Trump, era a ilustração de que o modelo funcionava, em 2018, com Trump no lugar de César, as campainhas acendem em toda a sua extensão - isto, enquanto, de outro ângulo, o problema da isotimia é que nenhuma sociedade tratará de forma igual quem arriscou a vida pela comunidade (um bombeiro, um polícia, etc.), por exemplo, com quem fugiu ao primeiro sinal (e parece haver quem não aceite esta diferenciação).

Pedro Miranda

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Educação ambiental - Nuvens de palavras - 10.º E

Jogos de tabuleiro - um sucesso

Com uma média de 35 utilizações por dia, os jogos de tabuleiro têm sido um sucesso. Uma das mais recentes iniciativas da biblioteca tem sido a criação de um espaço dedicado aos jogos de tabuleiro, que tem registado um enorme sucesso. Este espaço oferece aos alunos a oportunidade de desenvolver competências como o pensamento estratégico, a colaboração e a resolução de problemas. Os jogos de tabuleiro têm atraído um grande número de alunos, tornando-se um ponto de encontro para momentos de convívio e aprendizagem informal. 

Maratona de cartas - Amnistia Internacional

  A Maratona de Cartas é o maior evento de direitos humanos organizado pela Amnistia Internacional em todo o mundo. Nos últimos meses de cada ano, mobilizamos milhões de pessoas para que atuem em defesa de pessoas e comunidades que veem os seus direitos humanos violados. Após a divulgação dos casos, milhões de pessoas aceitam fazer frente à injustiça e contribuir para um mundo mais justo: assinam petições, escrevem cartas, organizam eventos, partilham informação nas redes sociais, fazem donativos e juntam-se ao nosso movimento. A 23ª edição da Maratona de Cartas decorre em Portugal de 4 de novembro de 2024 a 31 de janeiro de 2025. Os casos Uma corajosa defensora dos direitos das mulheres, Manahel al-Otaibi , está a cumprir uma pena de 11 anos de prisão na Arábia Saudita. Um tribunal para crimes de “terrorismo” aplicou-lhe uma pena incrivelmente severa apenas por promover os direitos das mulheres e por fazer publicações nas redes sociais. Qual é o problema?   Manahel ...