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A crónica de Pedro Miranda


Olhar o sol de frente
1.Se, como refere Jurgen Habermas, os direitos humanos são uma espécie de codificação secularizada do cristianismo; se, como comummente se aceita, a dignidade da pessoa é a trave em que assentam os sistemas jurídicos ocidentais; e se o pressuposto do livre-arbítrio, da existência, em algum grau, ainda que condicionado, de liberdade, presente na pessoa e nas suas ações, sustenta elaborações morais – em conceitos como responsabilidade ou dignidade – e enquadra e baliza os nossos quadros penais, então é caso para dizer, lendo-se vários dos nossos cientistas e filósofos da ciência que estes alicerces que subjazem e regulam o nosso devir social se encontram sob forte questionamento e/ou ataque, no que, a tornarem-se hegemónicos, ou alteraria por completo um modus vivendi como é o nosso ou implicaria, pelo menos, a mais clara consciência de que assentamos numa areia completamente movediça ou ficcional.

2.Exemplifico com um manual recente do biólogo, académico na Universidade de Stanford, Robert M. Sapolsky, intitulado “Comportamento”. Nele, o autor, considerando que o livre-arbítrio, pura e simplesmente, não existe, entende que os nossos sistemas penais deviam mudar totalmente. Conclui o mesmo afirmando, contudo, com uma certa ironia (do género: as pessoas não aguentariam tanta verdade), que realmente é melhor deixarmos a negação do livre-arbítrio para o momento em que se está a julgar alguém (nomeadamente, em termos jurídicos, mas não só necessariamente) - digamos, para se ser mais compreensivo com o outro. Porque, em realidade, um mundo sem livre-arbítrio é, também, um mundo sem "mérito", o que significa que, rigorosamente, não haveria por onde - ou porquê - elogiar (alguém). E o mundo onde não o pudéssemos fazer – por sabermos que isso não se justificaria – seria um lugar ainda mais frio do que este. Palavras como "responsabilidade", "dignidade", "pecado", etc. dificilmente aqui teriam lugar.

3.A negação do livre-arbítrio dá-se, não raramente, pela atribuição de um determinismo de tipo biológico, presente no indivíduo (seja de modo inato, seja na formação/formatação/maturação cerebral em função do ambiente/experiência em que aquela se deu, mas que assume o corolário, senão inevitabilidade, no comportamento que o sujeito manifesta).
Diversamente, creio que existem boas razões para acreditar nalguma forma de livre-arbítrio. É minha convicção que é especialmente útil a teorização M.R.Bennett e P.M.S. Hacker, em Fundamentos filosóficos da neurociência, Instituto Piaget, 2005: “se queremos compreender como é que uma pessoa normal raciocinou da forma que o fez, pensou o que pensou, tem os objetivos e propósitos que tem, e porque decidiu o que decidiu, formou tais e tais intenções e planos, e agiu intencionalmente, não há nenhuma justificação neurocientífica que nos esclareça o que queremos ver esclarecido (...) E se a nossa explicação tornar inteligível o seu raciocínio, não é preciso acrescentar mais nenhuma informação sobre os eventos neurais do cérebro. O máximo que uma explicação neural conseguiria fazer seria explicar o modo como era possível à pessoa raciocinar convincentemente (ou seja, que formações neurais têm de estar no seu devido lugar para dotar um ser humano com tais e tais capacidades intelectuais e volitivas), mas ela não consegue relatar o próprio raciocínio, quanto mais explicar a sua força. (...) se A matou B, podemos querer saber a razão. Podem dar-nos uma razão, mas mesmo assim podemos continuar insatisfeitos, querendo compreender melhor - mas o «melhor» que queremos compreender é muito provavelmente o motivo de A, e não os eventos neurais ocorridos na altura do assassínio. Queremos saber se ele matou B por vingança ou ciúmes, por exemplo, e isso exige uma narrativa muito diferente de tudo o que a investigação neurocientífica conseguiria produzir. A explicação da acção por redescrição, por citação de razões de actuação, ou pela especificação dos motivos do agente (e há outras formas de explicação de tipos relacionados com estes) não são substituíveis, mesmo em princípio, por explicações em termos de eventos neurais no cérebro. Este assunto não é empírico, mas lógico ou conceptual”.

4.Isto não implica, de modo algum, que o que a biologia nos informa não seja fundamental para melhorarmos os nossos sistemas reguladores.
Uma questão levantada pelo investigador é: qual deveria ser o Q.I. de corte para que alguém seja considerado suficientemente esperto para, nos termos da lei norte-americana, ser executado? O padrão é um Q.I. de setenta ou mais, e a discussão é se deveria ser uma média de setenta em vários testes de Q.I., ou se atingir esse número uma vez é o bastante para a pessoa ser executada. Uma questão relevante para cerca de 20% daqueles que se encontram no corredor da morte, nos Estados Unidos da América. Qual o quantum de destruição do córtex frontal para que alguém não seja considerado responsável (culpado), dado que uma grande parcela dos detidos no corredor da morte tem um histórico de lesões no córtex frontal? Com a neurociência a fazer cada vez maiores revelações acerca dos pensamentos, estaremos a aproximar-nos de uma deteção pré-crime, tentando provar quem irá cometer um crime? "Teremos de tomar uma decisão acerca do crânio como domínio privado" (p.703) (aqui ressoam mesmo as questões de Minority Report, um conto de Philip K. Dick que no cinema teve Tom Cruise como principal protagonista, mas que, na nossa realidade, significariam um sucumbir, ainda mais completo do que hoje, a uma vigilância totalitária). Uma outra constatação muito relevante, neste contexto: dados de revistas científicas, nos EUA, mostram que juízes julgam de forma mais dura quando a barriga "está a dar horas". Em termos genéricos, observa Sapolsky, "o que tem de ser abolido [no Direito] é a ideia de que a punição pode ser merecida e que punir é algo virtuoso" (p.732). Para quem nega o livre-arbítrio, como o autor, a punição até pode ser útil, em se provando dissuasora. Mas "merecida", num mundo determinista, não. Coisa diferente, é afastar da sociedade pessoas que estão "determinadas" a serem perigosas, nalguns casos sem possibilidade, até, de se reabilitarem - sim, essas pessoas devem ser afastadas para uma ilha remota. Mas não porque o "mereçam".

5.E, no entanto, se dados de neuroimagem, nomeadamente eletroencefalogramas são válidos nos tribunais indianos, relativamente ao apuramento da resposta à questão: "este cérebro está a mentir?", Robert M. Sapolsky reconhece: "não conheço nenhum especialista que ache que a técnica é suficientemente precisa". Aqui, por exemplo, fiquemos com duas noções: não é o cérebro, mas a pessoa que mente ou que diz a verdade; por outro lado, aquela técnica não é fidedigna.

6.Concluo com Denis Noble, e a necessidade de alargarmos o espectro num mundo que tende a tornar-se absolutamente reducionista e arrogantemente redutor: “não podemos, de forma coerente, negar a nossa própria racionalidade. De contrário teríamos dificuldades em expressar o que dizemos ou de ser convincentes ao dizê-lo, que é precisamente o que acontece no triste caso das pessoas mentalmente doentes que, não obstante estarem cientes da sua irracionalidade, não a conseguem resolver. Se conseguíssemos ter êxito na «redução» do comportamento racional à simples causalidade molecular ou celular, então deixaríamos de ter capacidade de exprimir com sentido a verdade daquilo que conseguimos fazer. Mas, felizmente, essa redução não é concebível."

7.No mundo do positivismo, daquele mundo que considera que nada mais há do que aquilo que segundo o método experimental existe, o conselho de um amigo, uma sentença de um juíz, as reflexões de um sábio, as conversas de um psicólogo não têm validade (não valem nada). A beleza ou o amor não existem - ou, então, são a sinapse xpto.
Pedro Miranda

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