Olhar
o sol de frente
1.Se,
como refere Jurgen Habermas, os
direitos humanos são uma espécie de codificação secularizada do cristianismo;
se, como comummente se aceita, a dignidade da pessoa é a trave em que assentam
os sistemas jurídicos ocidentais; e se o pressuposto do livre-arbítrio, da existência, em algum grau, ainda que
condicionado, de liberdade, presente na pessoa e nas suas ações, sustenta
elaborações morais – em conceitos como responsabilidade
ou dignidade – e enquadra e baliza os
nossos quadros penais, então é caso
para dizer, lendo-se vários dos nossos cientistas
e filósofos da ciência que estes
alicerces que subjazem e regulam o nosso devir social se encontram sob forte
questionamento e/ou ataque, no que, a tornarem-se hegemónicos, ou alteraria por
completo um modus vivendi como é o
nosso ou implicaria, pelo menos, a mais clara consciência de que assentamos
numa areia completamente movediça ou ficcional.
2.Exemplifico
com um manual recente do biólogo, académico na Universidade de Stanford, Robert M. Sapolsky, intitulado “Comportamento”.
Nele, o autor, considerando que o livre-arbítrio,
pura e simplesmente, não existe, entende que os nossos sistemas penais deviam
mudar totalmente. Conclui o mesmo afirmando, contudo, com uma certa ironia (do
género: as pessoas não aguentariam tanta
verdade), que realmente é melhor deixarmos a negação do livre-arbítrio para o momento em que se
está a julgar alguém (nomeadamente,
em termos jurídicos, mas não só necessariamente) - digamos, para se ser mais
compreensivo com o outro. Porque, em realidade, um mundo sem livre-arbítrio é, também, um mundo sem
"mérito", o que significa que, rigorosamente, não haveria por onde -
ou porquê - elogiar (alguém). E o mundo onde não o pudéssemos fazer – por
sabermos que isso não se justificaria – seria um lugar ainda mais frio do que
este. Palavras como "responsabilidade", "dignidade",
"pecado", etc. dificilmente aqui teriam lugar.
3.A
negação do livre-arbítrio dá-se, não
raramente, pela atribuição de um determinismo
de tipo biológico, presente no indivíduo (seja de modo inato, seja na
formação/formatação/maturação cerebral em função do ambiente/experiência em que
aquela se deu, mas que assume o corolário, senão inevitabilidade, no
comportamento que o sujeito manifesta).
Diversamente,
creio que existem boas razões para acreditar nalguma forma de livre-arbítrio. É minha convicção que é
especialmente útil a teorização M.R.Bennett
e P.M.S. Hacker, em Fundamentos filosóficos da neurociência,
Instituto Piaget, 2005: “se queremos
compreender como é que uma pessoa normal raciocinou da forma que o fez, pensou
o que pensou, tem os objetivos e propósitos que tem, e porque decidiu o que
decidiu, formou tais e tais intenções e planos, e agiu intencionalmente, não há
nenhuma justificação neurocientífica que nos esclareça o que queremos ver
esclarecido (...) E se a nossa
explicação tornar inteligível o seu raciocínio, não é preciso acrescentar mais
nenhuma informação sobre os eventos neurais do cérebro. O máximo que uma
explicação neural conseguiria fazer seria explicar o modo como era possível à
pessoa raciocinar convincentemente (ou seja, que formações neurais têm de estar
no seu devido lugar para dotar um ser humano com tais e tais capacidades
intelectuais e volitivas), mas ela não consegue relatar o próprio raciocínio, quanto
mais explicar a sua força. (...) se
A matou B, podemos querer saber a razão. Podem dar-nos uma razão, mas mesmo
assim podemos continuar insatisfeitos, querendo compreender melhor - mas o
«melhor» que queremos compreender é muito provavelmente o motivo de A, e não os
eventos neurais ocorridos na altura do assassínio. Queremos saber se ele matou
B por vingança ou ciúmes, por exemplo, e isso exige uma narrativa muito
diferente de tudo o que a investigação neurocientífica conseguiria produzir. A
explicação da acção por redescrição, por citação de razões de actuação, ou pela
especificação dos motivos do agente (e há outras formas de explicação de tipos
relacionados com estes) não são substituíveis, mesmo em princípio, por
explicações em termos de eventos neurais no cérebro. Este assunto não é empírico,
mas lógico ou conceptual”.
4.Isto
não implica, de modo algum, que o que a biologia nos informa não seja
fundamental para melhorarmos os nossos sistemas reguladores.
Uma
questão levantada pelo investigador é: qual
deveria ser o Q.I. de corte para que
alguém seja considerado suficientemente esperto para, nos termos da lei
norte-americana, ser executado? O padrão é um Q.I. de setenta ou mais, e a
discussão é se deveria ser uma média de setenta em vários testes de Q.I., ou se
atingir esse número uma vez é o bastante para a pessoa ser executada. Uma
questão relevante para cerca de 20% daqueles que se encontram no corredor da
morte, nos Estados Unidos da América. Qual o quantum de destruição do córtex
frontal para que alguém não seja considerado responsável (culpado), dado
que uma grande parcela dos detidos no corredor da morte tem um histórico de
lesões no córtex frontal? Com
a neurociência a fazer cada vez maiores revelações acerca dos pensamentos,
estaremos a aproximar-nos de uma deteção pré-crime, tentando provar quem irá
cometer um crime? "Teremos de tomar
uma decisão acerca do crânio como domínio privado" (p.703) (aqui
ressoam mesmo as questões de Minority
Report, um conto de Philip K. Dick
que no cinema teve Tom Cruise como
principal protagonista, mas que, na nossa realidade, significariam um sucumbir,
ainda mais completo do que hoje, a uma vigilância totalitária). Uma outra
constatação muito relevante, neste contexto: dados de revistas científicas, nos
EUA, mostram que juízes julgam de forma mais dura quando a barriga "está a
dar horas". Em termos genéricos, observa Sapolsky, "o que tem de ser abolido [no Direito] é a
ideia de que a punição pode ser merecida e que punir é algo virtuoso"
(p.732). Para quem nega o livre-arbítrio,
como o autor, a punição até pode ser útil, em se provando dissuasora. Mas
"merecida", num mundo determinista,
não. Coisa diferente, é afastar da sociedade pessoas que estão
"determinadas" a serem perigosas, nalguns casos sem possibilidade, até, de se reabilitarem - sim, essas pessoas devem ser
afastadas para uma ilha remota. Mas não porque o "mereçam".
5.E,
no entanto, se dados de neuroimagem,
nomeadamente eletroencefalogramas são
válidos nos tribunais indianos, relativamente ao apuramento da resposta à
questão: "este cérebro está a mentir?", Robert M. Sapolsky reconhece: "não conheço nenhum especialista que ache que a técnica é
suficientemente precisa". Aqui, por exemplo, fiquemos com duas noções:
não é o cérebro, mas a pessoa que mente ou que diz a verdade; por outro lado,
aquela técnica não é fidedigna.
6.Concluo
com Denis Noble, e a necessidade de
alargarmos o espectro num mundo que tende a tornar-se absolutamente reducionista e arrogantemente redutor: “não podemos, de forma coerente, negar a
nossa própria racionalidade. De
contrário teríamos dificuldades em expressar o que dizemos ou de ser
convincentes ao dizê-lo, que é precisamente o que acontece no triste caso das
pessoas mentalmente doentes que, não obstante estarem cientes da sua
irracionalidade, não a conseguem resolver. Se conseguíssemos ter êxito na
«redução» do comportamento racional à simples causalidade molecular ou celular,
então deixaríamos de ter capacidade de exprimir com sentido a verdade daquilo
que conseguimos fazer. Mas, felizmente, essa redução não é concebível."
Pedro Miranda
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