Excelente texto do nosso colega Pedro Miranda.
Da sociedade do cansaço
“O lamento do indivíduo depressivo, «Nada é
possível», somente pode manifestar-se no interior de uma sociedade que acredita
que «Nada é impossível” (A sociedade
do cansaço, p.31). A frase de Byung-Chul
Han ilustra, na perfeição aquele é, no entender do filósofo de origem
coreana e Professor de Filosofia em Karlsruhe, o traço predominante do nosso
tempo, a Ocidente: a existência de uma sociedade
do rendimento que outorga um terrível poder ao indivíduo: o de se potenciar
até ao ilimitado (inculcando-lhe, precisamente, a ideia da inexistência de
limite a que pode aceder), o de se (auto) explorar até ao tutano, o de
conseguir sempre mais, melhor, o de ter sucesso e ser responsável, solitário
responsável, por ele, carrasco e verdugo em um só, hiperactivo e
neurótico (se aquém da exigência, melhor, dos resultados que a si coloca como
objectivo). Uma sociedade do idêntico,
da positividade, sem o pólo da negatividade que marcou a sociedade disciplinar, de um controlo e
obediência férreas, em que o não e a proibição eram marcos, que a precedeu. Mais do que abolir o
controlo, subtileza, refinou-o a sociedade hodierna, passando (aparentemente?)
o comando para a mão do indivíduo tão livre quanto escravo (“uma liberdade
obrigada” a resultados óptimos). “Os
projectos, as iniciativas e a motivação substituem a proibição, o mandato e a
lei. A sociedade disciplinar é regida
pelo não. A sua negatividade gera
loucos e criminosos. A sociedade do
rendimento, ao contrário, produz depressivos e fracassados” (p.27).
Em
uma obra que principia por mostrar como o paradigma do imunológico ficou obsoleto porque implicava a outreidade/alteridade (o outro, o inimigo, o estranho…), esclarece
que hoje o problema é de natureza inversa: o excesso do mesmo, do idêntico,
tempo no qual são doenças neuronais, do défice de atenção à depressão, passando
pelo síndrome do desgaste ocupacional que primam.
No
fundo, uma hiperactividade, um activismo não raramente sem sentido, diríamos,
até, substituto do sentido que não se divisa, ou, em casos outros, nem se
interroga/busca (“A vida nua, convertida
em algo totalmente efémero, reage, justamente, com mecanismos como a
hiperactividade, a histeria do trabalho, a produção. Também a actual aceleração
está ligada a essa falta de Ser. A
sociedade do trabalho e rendimento não é nenhuma sociedade livre”, p.48; Nietzsche citado: “Aos activos falta-lhes habitualmente uma actividade superior […] nesse aspecto
são folgazões. Os activos rodam, como roda uma pedra, conforme a estupidez da
mecânica”, p.55). Multitasking
também os animais selvagens apresentam: ora, protegendo as crias, ora
procurando comida, ora avançando para outro animal, ora alerta contra possível
ataque de selvagens diversos, ora salvaguardando a sua parelha sexual. O défice
de atenção concentrada, a existência de uma dispersa hiperatenção (multiplicação da atenção por mil e uma coisas,
tarefas, leituras) é colossal e os efeitos, para novos êxitos civilizacionais,
tremendos: “Os recentes desenvolvimentos
sociais e a mudança de estrutura da atenção fazem com que a sociedade humana se
aproxime cada vez mais da selvajaria. Entretanto, o assédio laboral, por
exemplo, alcança dimensões pandémicas. A preocupação pela vida boa, que implica
também uma boa convivência, cede progressivamente perante uma preocupação pela
sobrevivência. Os sucessos culturais da humanidade, aos quais pertence a
filosofia, devem-se a uma atenção profunda e contemplativa” [que
desaparece] (p.34/35).
Se
o segundo capítulo da obra nos insere na tese principal (e inovadora) de um
novo tipo de sociedade em pleno desenvolvimento, já a defesa, pelo autor, da
urgência do recuperar desta dimensão contemplativa – “o seu carácter fundamental é o assombro
sobre o Ser-assim das coisas, que
está livre de toda a factibilidade e processualidade. A dúvida moderna e cartesiana substitui o assombro” (p.37) - contam-se entre as mais belas e sugestivas
páginas deste pequeno livro. [citando Nietzsche, de novo: “Por falta de sossego, a nossa civilização desemboca em uma nova
barbárie. Em nenhuma época, se quotizaram mais os activos, quer dizer, os
desassossegados. Conte-se, por tanto, entre as correcções necessárias que devem
fazer-se ao carácter da humanidade o fortalecimento em ampla medida do elemento
contemplativo”, p.39].
Um
capítulo inteiro é dedicado ao diálogo crítico com Hannah Arendt e (à sua) “A condição humana”. Se Gregório Magno pode ser apropriado a
propósito, para sublinhar como no cristianismo a dimensão da vida activa não
era desprezada (em favor de um exclusivo contemplativo), todavia o apontar à
descrição do animal laborans feita
por Arendt, como estando ultrapassada nos nossos dias, pois que “o animal laborans moderno tardio é, em
sentido estrito, tudo menos animalizado. É hiperactivo e hiperneurótico”
(p.45), parece contradizer a ideia, avançada pelo autor anteriormente, de que
um hiperactivismo degrada o humano e, no caso do multitasking o aproxima do selvagem. Mais, havia escrito: “Ao novo tipo de homem, indefeso e
desprotegido frente ao excesso de positividade, falta-lhe toda a soberania. O
homem depressivo é aquele animal laborens
que se explora a si mesmo, a saber: voluntariamente, sem coacção externa (…) já
não pode poder mais” (p.30).
A
perda da crença, das crenças é questão fulcral não obliterada pelo filósofo que
a sabe tão concreta, tão prática, tão quotidiana: “a moderna perda de crenças, que afecta não só a Deus ou o além, mas
também a própria realidade, faz com que a vida humana se converta em algo
totalmente efémero. Nunca foi tão efémera como agora. Mas não só esta é
efémera, como o é o mundo enquanto tal. Nada é constante e duradouro. Face a
esta falta de Ser surgem o nervosismo
e a intranquilidade (…) O Eu moderno-tardio está completamente isolado.
Inclusivamente as religiões no sentido de técnicas tanáticas, que libertem o homem do medo da morte e gerem uma
sensação de durabilidade, já não servem. A desnarrativização geral do mundo
reforça a sensação de fugacidade: torna a vida nua (…) Ante a falta de uma
tanatotécnica narrativa nasce a obrigação de manter esta nua vida
necessariamente sã. Já o disse Nietzsche: depois da morte de Deus, a saúde é
elevada a deusa. Se houvesse um horizonte de sentido que superasse a vida nua,
a saúde não podia absolutizar-se desse modo (p.47)”.
Além
do diálogo crítico com Arendt e Nietzsche, um outro autor várias vezes
convocado ao ensaio é Agamben. Para
quem leu O que resta de Auschwitz?,
do filósofo italiano, não espanta que a descrição impressiva do humano dos
nossos dias, por Byung-Chul Han, desague nessa comparação-limite com o Muselmanner dos lager, a arrepiante figura híbrida dos campos, morto-vivo, apático
a quem já não havia chibatadas, frio ou gelo que tocassem, que fizessem mexer.
Em
suma, um cansaço que trespassa cada um, que queima a alma, que rouba a fala,
que semeia multidões de isolados, mesmo que ao lado dos outros (não era da
apatia, da impassibilidade, do chicote que já não fazia mexer o cavalo imóvel
que também falava Béla Tarr, em O cavalo de Turim?). E sabermos, com Handke, que o cansaço poderia ser tanto
outra coisa, propulsor do ócio, do deleite, da atenção partilhada, onde a mesmidade não teria lugar, ou hegemonia.
Pedro
Miranda
A
partir de La sociedad del cansacio, Byung-Chul Han, Herder, Barcelona,
2012.
Excertos
da obra, traduzidos para português, por mim.
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