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O elogio da imperfeição



1.Se tudo depende de mim, se posso manipular/conformar a realidade por completo (de modo a obter os resultados que pretendo), se estiver convencido de que, em querendo/esforçando-me/empenhando-me, chego (necessariamente) sempre ao que ambiciono; se toco, portanto, o ilimitado, se posso alcançar a perfeição - e quantas vezes o mundo nos diz isto, nas suas mais diversas faces, as mais das vezes muito amáveis e bem-intencionadas -, então não estou aberto às minhas debilidades, fragilidades, feridas (não estou aberto, sequer, a olhar para elas, a reconhecê-las; ajo, pois, como se não existissem), numa palavra, recuso sentir-me carente/carecido de algo/Alguém, de um plus. O fechamento de todas as possibilidades que não as minhas, pode ensinar uma moral transbordante (nos termos de Tagore, "Ele, que está demasiado ocupado em fazer o bem, não tem tempo para ser bom"), mas não se abeira do precipício da fé. Da gratuitidade, do dom, da graça. Não queiras ser perfeito, diz a Guida, ainda durante a infância, e a frase trespassa, corta e ilumina de um modo absolutamente intenso, muitos anos depois, a verdade maior da nossa condição. O perfeccionismo como erro. As ansiedades como contendo, em momentos diversos, raízes que podem ser de natureza genética, psicológica, mas, em realidade, espiritual, também (como contava ao António, caro aluno do Secundário: não fiques prisioneiro de um 18, ou de um 19; que é isso na vida?). Uma boa educação: inculcar/transmitir capacidade de diferir a recompensa (sim, sem dúvida); inculcar/transmitir a capacidade de escutar até ao fim – no dizer do padre Halík, não é que os ateus não tenham razão; é que não têm paciência (para escutar o mais íntimo da realidade, a realidade da realidade) - e de agraciar as minhas debilidades (não menos essencial). De outro modo, deifico-me e, certamente, me perco, me infernizo. Perdoarmo-nos/aceitarmo-nos, eis uma divisa raramente escutada. Um trabalho, precário, em progresso. Nunca concluído, suponho. Mesmo antes de ler Paolo Scquizzato e o seu O elogio da imperfeição - precioso desenvolvimento espiritual em torno desta noção, bela maneira de iniciar uma nova colecção, Grão de Mostarda (Paulinas)  - esta apresentava-se-me como uma das mais importantes descobertas destes trinta e tais. 
2. Sem som, não se distingue o foguetório que ribomba na pantalha: o fogo-de-artifício tanto pode ser de Melbourne (em diferido), como de Madrid, Nova Iorque, Amarante ou dos Açores (que me dizem ter festejado, desta vez, com uma hora de antecedência 2017; haja alegria!). A normalização - o modelo jantarada de hotéis, concerto e foguetes no ar, a que se junta o inevitável banho no mar de dia 1, sempre acaloradamente reportado, a cada Ano Novo; o esquecimento cultural, vívido e vivido, do Natal  -  em vigor torna todos os tempos iguais. Para recorrermos à formulação do filósofo, “falta ao tempo um ritmo ordenador. Daí, que perca o compasso. (...) Não há nada que reja o tempo. A vida não se enquadra numa estrutura ordenada nem se guia por quaisquer coordenadas que engendrem uma duração. Identificamo-nos também com a fugacidade e o efémero. E, assim, cada um de nós próprios se torna qualquer coisa de radicalmente passageira. A atomização da vida supõe uma atomização da identidade. Cada um passa a ter-se somente a si mesmo (...) As pessoas envelhecem sem se tornarem maiores (…) Já não há diques que regulem, articulem ou deem ritmo ao fluxo do tempo, que possam detê-lo e guiá-lo, sustentando-o, no tão belo duplo sentido da palavra. Quando o tempo perde o ritmo, quando flui no aberto sem se deter sem rumo algum, desaparece também qualquer tempo apropriado ou bom(...) O homem perdeu completamente o sentido deste a tempo. Cedeu ao destempo” (Byung-Chul Han, O aroma do tempo)
A necessidade da demora, a reivindicação contemplativa que assuma o tempo, o kairos no cronos, pode, pois, em chave de leitura para a Páscoa, ter este âmbito de escuta, este aroma: as chagas, as feridas, antes mesmo da ressurreição – e não há ressurreição sem morte -, têm que ser olhadas de frente – em nós, nas nossas ruas, no e nos que não queremos ver, os que tornamos invisíveis e descartados -, para que uma dada tradição (religiosa) se não nos ofereça/desfigure como a simples projecção narcísica triunfalista (sem tocar a realidade). Será, aliás, potencialmente, desse encontro com a nossa miséria que poderemos reconhecer a vida como dom e promessa, hora de acordar, momento de um salto: “A nossa experiência de fé move-se a partir de uma outra intuição originária: acreditamos porque experimentámos a misericórdia. Todo o crente é tal porque, num momento da sua vida, num lugar e num tempo precisos, intuiu e experimentou uma bênção, em geral, uma experiência de misericórdia. A raíz da fé não tem nada a ver com a lógica da causalidade, mas pelo contrário é, muitas vezes, uma misericórdia sem causa, e é exatamente nisso que está o seu carácter explosivo, a estupefacção” (Stella Morra, Deus não se cansa).

Pedro Miranda

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